terça-feira, 29 de março de 2011

A visita da Catonephele Numilia Penthia

          Eu já estava me preparando para dormir sem fazer este post. E isso seria um sacrilégio, porque hoje me aconteceu algo q prometi, deixaria registrado. Eu estava na Praça da Estação,  no ponto do ônibus, esperando o dito cujo pra ir para a escola. Era umas dez e quinze da manhã... Eu estava  pensando  no livro de Milan Kundera, "A Arte do Romance", do qual eu havia lido alguns trechos  logo depois do café da manhã. Pensava especificamente no que ele fala sobre a leveza de seu personagem Tomas de "A Insustentável Leveza do Ser". Pensava também no quanto alcançar esta leveza exige de outros que, como a outra personagem do mesmo romance, Tereza,  não nascem 'naturalmente' leves, mas sim marcados pela vertigem. Daí me lembrei também de FPessoa e sua proposta estética da alquimia no fazer literário, no fazer artístico, na construção da própria vida. E, então, eis  que recebo a visita abaixo:
       Uma Catonephele Numilia Penthia pousou no meu ombro esquerdo e ali quis ficar. Suas asas foram se acalmando até q ela ficou ali imóvel. E eu não sabia o q fazer porque as pessoas me olhavam: eu tinha uma borboleta pousada em meu ombro, calma e sossegadamente pousada, como se eu fosse flor, sua casa, seu descanso.      
        Era uma resposta porque aquela leveza havia exigido tanto daquele ser. Havia exigido a fase de ovo, de lagarta, mas naqueles estados densos anteriormente vividos morava a promessa dessa leveza q agora estava ali comigo, em mim.
        E eu o q fazer com ela? Já fazia uns cinco minutos. E se o ônibus chegasse? Talvez ela tivesse resolvido seguir comigo, porque não fazia o menor sinal de voar. Como estar dentro de um ônibus com aquela leveza junto a mim? As pessoas ficariam incomodadas (mundo avesso mesmo...). Então resolvi ir até a praça do outro lado da rua e a depus em silencioso agradecimento junto de algumas flores. Ela foi com calma e paz e eu voltei para o ponto do ônibus atrasada e agradecida porque a leveza havia pousado em mim.
          Deixar de fazer este post seria realmente um sacrilégio.

domingo, 27 de março de 2011

Memórias de menina

           O sítio da avó era sempre um campo de exploração e de fenômenos incomuns. As galinhas que se escondiam quando a menina e a tia assomavam à porteira, as caixas enormes guardadas debaixo da cama do antigo quarto das tias, o quartinho escuro, sem janelas, defronte ao quarto do tio solteirão, a casa das máquinas, o rádio com a Voz da Brasil, e o tic-tac do relógio da mesa da cozinha... Visitar a casa da avó era sempre uma aventura, era explorar um mundo diferente.
           A casa do sítio ficava numa pedreira e era cortada por dois veios de água – um na chegada, entre o curral e a porteira de entrada da casa, e o outro, nos fundos, do lado da porta da cozinha. A casa ficava no alto. O sítio, aliás, fica num alto de serra, com matas ao fundo, cheias de jacus, gatos e cachorros do mato. A pedreira na frente permitiu à casa uma vista larga do vale e da estrada tranqüilos lá embaixo. Na pedreira, o avô construíra a casa de moradia, ao lado dela a casa das máquinas (para o trabalho com os grãos colhidos e o preparo da ração do gado), o paiol, mais acima, o galinheiro, perto do pomar, o chiqueiro e, descendo junto com os cursos d`água, que se unificavam logo após a porteira, ficava, à meia descida, o moinho de fubá, e no final da cascata, a usininha geradora de energia elétrica. O sítio por muito tempo foi a única propriedade rural das cercanias a ter energia elétrica. O ato de desligar o gerador era o ritual que encerrava o dia de trabalho. O tio, filho mais velho, solteirão e sistemático, descia lá pelas nove, depois da Voz do Brasil, depois de jantar e da broa estar assada, para desligar o gerador. Então, um escuro enorme tomava conta de tudo. Só se ouvia o coaxar dos sapos e, às vezes, um ou outro animal a fazer barulho. Em noites de lua nova, era a experiência do breu, do escuro completo. Não havia como divisar nenhuma forma ao redor, restavam sons e cheiros. E uma menina de olhos abertos que de nada lhe valiam. Depois de algum tempo, o sono e o cansaço venciam-lhes.

........
Uma foto antiga, no sítio, minha avó e os filhos:

sábado, 26 de março de 2011

Benedito Nunes

Uma homenagem q encontrei no Caquis Caídos da Adriana Lisboa e posto aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=GeYJQG1ZLvw 

Os outros três constituem sua participação no programa Vereda Literária:
http://www.youtube.com/watch?v=fzPQS1Z_nGM 
http://www.youtube.com/watch?v=nDTZHDZLw88 
http://www.youtube.com/watch?v=A1KnbUxEgI0  

Benedito Nunes, outra grande ausência na literatura brasileira. Seus estudos formaram gerações de literatos em nosso país. Seus textos mostram a delicadeza e a profundidade que impedem a crítica de ser apenas algoz.

A serpente sibila!


Psiu!!!
Psiu!!!
Psiu!!!
Psiu!!!
A serpente sibila!
Verbo ou substantivo?
Problema seu descobrir!
              Fernanda Meireles

sexta-feira, 25 de março de 2011

Diversos Pessoa

Way of the Serpent.

Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência directa, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orfeu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cercá-lo-ão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos vales, e a dos lares nas faldas. E o triunfo consiste na força para, sabendo sentir essas atracções intensamente (pois não sabê-las sentir é não ter alma para a subida), as submeter à emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submetê-las à vontade do espírito do mundo. Este processo de vitória, figuram-o os emblemadores no símbolo da Crucifixão da Rosa—ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o círculo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o circulo) mas como produto do Espírito (que isso é a cruz).
s.d.

Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética - Fragmentos do espólio . Fernando Pessoa. (Introdução e organização de Yvette K. Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.
- 31.
“O Caminho da Serpente”
Fernando Pessoa
wassure oreba
hyotto shita kotoga omoide no taneni mata naru
wassure kanetsumo

coisa simples
esquecida
semente de saudade

Takuboku Ishikawa

quinta-feira, 24 de março de 2011

Um bom poema...

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando juntos

Leminsky

Cânticos de Cecília

Adormece o teu  corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

quarta-feira, 23 de março de 2011

Nebulosa quadrada

Ninguém sabe realmente dizer como uma nebulosa toma a forma de um quadrado, mas esse é justamente o caso da MWC 922.
Uma das hipóteses diz que uma estrela, ou um conjunto de estrelas, que está no centro do sistema estelar expele cones de gases durante a fase final de desenvolvimento, originando esse peculiar feitio.
Com base em evidências científicas, os pesquisadores especulam que a MWC 922 pode se transformar, um dia, em uma supernova.
A foto, divulgada nesta quarta-feira pela Nasa (agência espacial americana), foi feita pelos telescópios espaciais Hale, na Califórnia, e Keck-2, no Havaí.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/893056-telescopios-da-nasa-fotografam-nebulosa-quadrada-veja.shtml

Nebulosa quadrada MWC 922 seria formada por gases expelidos de estrela ou conjunto de estrelas central

           Enquanto no universo até uma nebulosa quadrada é possível, aqui na Terra outras coisas, verdadeiramente, acabam sendo reconhecidas como impossíveis. Fazer o quê? A covardia e o medo de viver são coisas bem humanas. Humanas até demais. Como me disse semana passada, uma pessoa muito querida, é muito fácil ser covarde.

sábado, 19 de março de 2011

futuro lar doce lar

Breve, breve, o lançamento da pedra fundamental!
My sweet home!

quarta-feira, 16 de março de 2011

Escrever

 
 Se alguém nota que estás escrevendo bem, toma cuidado: é caso de desconfiares... O crime perfeito não deixa vestígios.

Sonho

    Um poema em que não se notasse nem a suspeita ênfase da simplicidade e que, ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Interior

   As persianas, entrefechadas, deixam passar uma réstia de sol, onde zumbe uma mosca. Silêncio. Somente, na última prateleira, há um velho boião que diz: "Viva Dom Pedro Segundo!"  - única nota exclamativa  neste  silêncio tecido (e não interrompido) pelo zunzum da mosca em seu vaivém. Minha faca corta silenciosamente como em sonho  uma fatia finíssima de queijo. O queijo é loiro. O chá... é cor de chá. Há momentos em que as coisas são intensamente o que são e dispensam os adjetivos. Adeus, metafísicas. O queijo tem gosto de queijo. A vida tem gosto de vida. Tudo é definitivo. O boião, lá no alto da prateleira, continua da mesma opinião.

O apanhador de poemas

    Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro  engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe armemos ciladas: com rimas, que são seu alpiste; há poemas que só se deixam apanhar com isto. Outros que só ficam presos atrás das catorze grades de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante. É preciso recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar. E há os poemas livres, imprevisíveis. Para esses é preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.

O grande sortilégio

      A magia das palavras num poeta deve ser tão sutil que a gente se esqueça que ele está usando palavras.

Cânticos de Cecília

Cântico III

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fale palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fale palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

terça-feira, 15 de março de 2011

            Minha irmã na Irlanda e a prometida foto com o James Joyce.

sábado, 12 de março de 2011

À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

(Trecho do poema de FPessoa dedicado a Sidónio Pais. No texto encontramos o jovem poeta FPessoa a produzir um de seus primeiros textos para o projeto de poesia nacionalista q ele perseguiu por toda a vida. No  texto em questão, o poeta louva o personagem histórico, elevando-o à altura de um novo Dom Sebastião, mesmo em detrimento dos erros e defeitos que a História Nacional de Portugal atribui ao Presidente Sidónio Pais. O que se vê (e se verá em toda a obra de Pessoa) é uma característica sua, quase mística, de inflar a imagem daqueles a quem amava ou em quem acreditava. Um preço pago por todos aqueles que têm os olhos repletos de infinito.)

Longe da fama e das espadas,
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.

Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que Passado
A terra e os céus.

Ali o gesto, a astúcia, a lida,
São já para ele, sem as ver,
Vácuo de acção, sombra perdida,
Sopro sem ser.

Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor conserva?
Tudo acabou?

No mistério onde a Morte some
Aquilo a que a alma chama a vida,
Que resta dele a nós — só o nome
E a fé perdida?

Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?

Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.

Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!

Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!

Não é com fé que nós não cremos
Que ele não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Em nossa frente.

No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.

Ainda de longe nos anima,
Inda na alma nos conduz
Gládio de fé erguido acima
Da nossa cruz!

Nada sabemos do que oculta
O véu igual de noite e dia,
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.

Apraz ao que em nós quer que seja
Qual Deus quis nosso querer tosco,
Crer que ele vela, benfaeja
Sombra connosco.

Não sai da nossa alma a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Ele inda pensa em nós e é
O bem-amado.

Tenhamos fé porque ele foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o herói
Sob o ermo céu.

E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte!
Ele já não.

Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornara, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.

Tornará feito qualquer outro,
Qualquer cousa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Inda compele,

Inda comanda, e a armada ida
Para os campos da Redenção,
Às vezes leva à frente, erguida
Espada, a Ilusão.

E um raio só de ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.

Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem ama.
É lenha só a Realidade.
A fé é a chama.

Mas ai, que a fé já não tem forma
Na matéria e na cor da Vida,
E, pensada, em dor se transforma
E a fé perdida!

Pra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!

Mas basta o nome e basta a glória
Para ele estar connosco, e ser
Carnal presença de memória
A amanhecer;

Espectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ânsia,
Que fala com oculta voz
Na alma, a distância;

E a nossa própria dor se torna
Uma vaga ânsia, um esperar vago,
Como a erma brisa que transtorna
Um ermo lago.

Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque ele pôde ser, Deus não
Nos desprezou.

Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus;

E, por directa consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.

Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com nocturno véu.
Deus p'ra que no-lo deu, se era
P'ra o tornar seu?

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.

E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;

Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — por que espera?
Por que não vem?

Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!

Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta —
Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!

E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!

Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
Estrela do céu.

Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;

E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longínqua chama —
O DESEJADO.

Sim, só há a esp'rança, como aquela
- E quem sabe se a mesma? — quando
Se foi de Aviz a última estrela
No campo infando.

Novo Alcácer-Kibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Por que pecado novo o açoite
Assim é dado?

Só resta a fé, que a sua memória
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga ilusória
A quem amou.

Flor alta do paul da grei,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou el-rei
Dom Sebastião.

O sopro de ânsia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,

Bater à porta ao nosso gesto,
Fazer apelo ao nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,
...............................................

27-2-1920

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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sexta-feira, 11 de março de 2011

Memórias de menina

          Certas vezes ao ano, a tia lhe chamava para visitar a avó que morava noutra localidade, noutro distrito de Valença. Era mais ou menos sempre a mesma situação. Elas pegavam o ônibus em João Honório e iam até Valença. De lá, pegavam outro que iria para Santa Rita do Jacutinga, mas desciam em Pedro Carlos. Pegavam sempre o ônibus da tarde e desciam em Pedro Carlos por volta de dezessete e trinta, dezoito horas. Até o sítio da avó, a Cascata, era preciso caminhar um bom trecho a pé.
            A menina tinha por volta de seus oito, nove anos, e sua imaginação tornava esse caminhar diferente. Ela sempre fora apaixonada pela natureza da região: muita água, muitas nascentes, muita vegetação densa, marcada por pequenos cursos de água... A estradinha que percorriam ficava entre duas cadeias de morros, cheia de curvas, barulhos de bois e bichos das matas próximas. Juntava a isso, um escurecer crescente em razão da entrada da noite. É o que ela, hoje, conhece como hora de Anúbis.
        Esse escurecer gerava sombras e mudanças de cor e som no mundo claro e previsível produzido pelo Sol. Os pássaros estavam buscando seus ninhos e seus pousos para atravessarem a noite. Havia piados e cantos diferentes naquelas árvores tão próximas. Os bois, mugindo mansamente, retornavam aos currais. Um ou outro, solitário, mugia longo e longe.
           Porém, o que mais impressionava a menina eram os formatos que as árvores dos altos dos morros tomavam. O escurecer tornava-as maiores, parecia que se tornavam gigantes, gigantes negros de diversas formas, todos ao alto a acompanharem seus passos. E ela, embaixo, pequena e indefesa, não conseguia deixar de olhá-los e procurar identificar-lhes as formas e, com isso, suas identidades. Hoje ela reconhece neles algo como aqueles gigantes que Dom Quixote encontrava e via nos moinhos de vento com os quais se deparava em suas andanças justiceiras. Ela, menina, já tinha seus gigantes que, à semelhança de um exército silencioso, acompanhavam seus passos. E, assim como Dom Quixote, os gigantes também residiam nela, antes que naquele trajeto semi-escuro que ela cortava.
               A avó reclamava com a tia que era preciso mudar o horário daquela viagem. Porém, a menina mesmo de nada reclamava. Sempre que se falava em fazer nova viagem, ela já antevia o escurecer, os barulhos, os gigantes, coisas da vida... Coisas que era preciso viver, pelo fato de simplesmente haver um trajeto a ser percorrido, trajeto, ora claro e previsível, ora escuro e misterioso, mas sempre denso, cheio de nascentes e margens.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A despedida


     

Agora sim, uma foto no dia da partida deles. Sejam felizes sempre!!

sábado, 5 de março de 2011

Diferentemente do Caetano Veloso

Acho que ouvi uma canção de Madonna
"When you look at me, I don't know who I am"
E desentendi
Pois comigo, é você quem me olhando, detona
A explosão de eu saber
Quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê, seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
Então o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E, no entanto, diferentemente de Osama e Condoleezza, eu não acredito em Deus

sexta-feira, 4 de março de 2011

Epístolas pessoanas

Carta a Adolfo Casais Monteiro

Lisboa, 20 de Janeiro de 1935.

Meu querido Camarada:
           Muito obrigado pela sua carta. Ainda bem que consegui dizer alguma coisa que deveras interessasse. Cheguei a duvidar de que o fizesse, pela maneira precipitada e corrente como lhe escrevi, ao sabor da conversa mental que estava tendo consigo.
             Respondo e com igual espontaneidade, portanto falta de método e de arrumação, à sua carta agora recebida. Mas, enfim, qualquer coisa respondo. Sigo ao acaso os pontos a que tenho de responder.
           Quanto ao seu estudo a meu respeito, que desde já, por o que é de honroso, muito lhe agradeço: deixe-o para depois de eu publicar o livro grande em que congregue a vasta extensão autónima do Fernando Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano. E então V. terá os dados suficientes: esse livro, a faceta subsidiária representada pela «Mensagem», e o bastante, já publicado, dos heterónimos. Com isto já o Casais Monteiro poderá ter uma «impressão de conjunto», supondo que em mim haja qualquer coisa tão contornada como um conjunto.
              Em tudo isto, reporto-me simplesmente a poesia, não sou porém limitado a esse sorriso das letras. Mas, quanto a prosa, já me conhece, e o que há publicado é o bastante. Até à data, que indico como provável para o aparecimento do livro maior, devem estar publicados o Banqueiro Anarquista (em nova forma e redacção), uma novela policiária (que estou escrevendo e não é aquela a que me referi na carta anterior) e mais um ou outro escrito que as circunstâncias possam evocar.
              É extraordinariamente bem feita a sua observação sobre a ausência que há em mim do que possa legitimamente chamar-se uma evolução qualquer. Há poemas meus, escritos aos vinte anos, que são iguais em valia — tanto quanto posso apreciar — aos que escrevo hoje. Não escrevo melhor do que então, salvo quanto ao conhecimento da língua portuguesa — caso cultural e não poético. Escrevo diferentemente. Talvez a solução do caso esteja no seguinte.
               O que sou essencialmente — por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja — é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como cornparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento.
              Creio ter dado, nestas palavras apressadas, qualquer vislumbre de uma ideia nítida do em que concordo com, e aceito, o seu critério de que em mim não tem havido propriamente evolução.
              Refiro-me, agora, ao caso da publicação de livros meus num futuro próximo. Não há razão para se preocupar com dificuldades nesse sentido. Se quiser realmente publicar o Caeiro, o Ricardo Reis e o Álvaro de Campos, posso fazê-lo imediatamente. Sucede, porém, que receio a nenhuma venda de livros desse género e tipo. A hesitação está só aí. Quanto ao livro grande de versos, esse, como qualquer outro, tem desde já a publicação garantida. Se penso mais nesse do que noutro, é que acho mais vantagem mental na publicação dele, e, apesar de tudo, menos risco de inêxito na sua edição.
                Quanto à publicação do Banqueiro Anarquista em inglês, também aí não haverá, creio eu, mas por outras razões, dificuldade notável. Se na obra houver capacidade de interesse para o mercado inglês, o agente literário a quem eu a enviar, a colocará mais tarde ou mais cedo. Não será preciso recorrer ao apoio do Richard Aldington, cuja indicação todavia, muito lhe agradeço. Os agentes literários (respondo agora à sua pergunta sobre o que são) são indivíduos, ou firmas, que colocam os livros ou escritos dos autores junto de editores ou directores de jornais, que eles, melhor que os autores, avaliam quais devem ser, mediante uma comissão, em geral de dez por cento. Neste ponto, sei o que hei-de fazer e a quem me hei-de dirigir — coisa rara, aliás, em mim, em qualquer circunstância prática da vida.
         Abraça-o o camarada amigo e admirador
           Fernando Pessoa

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980. - 211. 1ª publ. in “Diário Popular”. Lisboa: Set. 1943.

Crônica do José Castello

A poesia do encontro
         Uma parábula judaica conta que Deus usou dois fogos para criar as tábuas da Lei: o fogo negro, que desenha as letras que lemos, e o fogo branco, que desenha o espaço entre essas letras. Graças aos espaços vazios abertos pelo fogo branco podemos ler as letras da Lei, redigidas com o fogo negro. Não existissem os intervalos brancos, as ausências, e a Lei seria ilegível.
            Leio um resumo dessa bela parábula em Nocturno, o inspirador livro do português Rui Chafes com texto de Marcio Doctors (publicado pela Fundação Eva Klabin). Uma longa entrevista que Rui concede a Marcio me apresenta a história. Em bom momento. Antes de chegar a ela, eu procurava um ponto de respiração que me permitisse uma aproximação mais fina do trabalho de Rui Chafes, que o livro reproduz em belas fotografias.
           A parábola me ajuda a pensar a respeito das dificuldades que enfrentamos durante a leitura, não só de um livro, mas de qualquer arte. De qualquer coisa _ uma paisagem, um mapa, uma pessoa, um cão. Ler é uma tarefa difícil, que inclui um tanto de cegueira. O fogo negro de que fala a história.
           Ajudam-me as palavras de Márcio em outro momento da mesma entrevista. Ele diz: "Se é certo que não é possível reduzir as palavras às coisas, que não se comunicam entre si porque são irredutíveis umas às outras, podemos, no entanto, na arte trabalhar com a poesia do encontro e não com a rigidez da busca".
          O encontro inclui pausas, hiatos, separações, negações _ ou as letras não se deixam ler. É como na respiração, para dentro, para fora, em uma alternância essencial. Sem a pausa (a expiração) ninguém respira. Letras negras, letras brancas, só o contraste entre elas nos permite a leitura. Quem quer ler só a claridade, cega.
            As próprias coisas só existem se as escondemos sob o manto das ideias. Agora é Rui quem vem em meu socorro: "Só acredito nos objetos enquanto possuírem estatuto de pensamento". Muitas pessoas, avessas ao hábito de pensar, preferem um mundo gerido pela objetividade, pelos fatos e pelos resultados. Um mundo bruto e _ eles dizem _ "real". Quanto a mim, eu fujo desse mundo. A literatura me serve de abrigo

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cânticos de Cecília

Cântico II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim  para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade...
É a eternidade.
És tu.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Uma despedida

                   Minha irmã e o namorado estão de partida para a Irlanda. Partem semana que vem. Desejo que sejam muito felizes, que essa viagem de estudos seja promissora. De minha parte, fica meu orgulho por vê-la assim tão feliz e buscando alto e longe o que é dela. Fica também a sensação feliz de ter podido estar por perto na concretização de muitos dos seus sonhos. Meu pai, se estivesse aqui, estaria muito feliz (um pouco preocupado é verdade, afinal tão longe!). Desejo tudo de bom para eles. E minha cara de saudade e felicidade misturadas, mostra o quanto sou coruja.