sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Hinos Órficos

Hino ao Sol

Ouve-me, venturoso, onividente de olhos eternos,
Titã de áureo cintilar,Hipérion, luz celeste,
incansável gerado por si mesmo, doce visão aos vivos,
à esquerda engendraste a Aurora, à direita a Noite,
tempera as Estações [Horas] dançando com tuas quadrigas; (5)
corredor, silvante, flâmeo de fúlgidos olhos, condutor do carro,
guiando entre rugentes turbilhões sem fim
aos pios leva o bem e aos ímpios, a cólera;
de áurea lira, detém o curso harmonioso do cosmo,
é quem aponta atos de valor, é o jovem que nutre as Horas; (10)
imperador do cosmo, chilreante, correndo como fogo, circunvolvente,
Lucífero, de aparência vária, vital, frutuoso Peã,
viçoso sempre, límpido, pai do Tempo [Khronos], Zeus imortal,
claro, luz de todos,  olho circundante do cosmo,
a se extinguir e a brilhar em luzentes lindos raios. (15)
Exemplo de justiça [Dikaiosyne], amigo das águas, senhor do cosmo,
guardião da lealdade, sempre supremo, auxiliador de todos,
olho da justiça [Dikaiosyne], luz da vida; ó cavaleiro,
com estridente açoite impelindo a tua quadriga,
ouve minhas palavras, e mostra a doce vida aos iniciados.  (20)

[Tradução: Rafael Brunhara]


quinta-feira, 29 de maio de 2014

Clariceando na madrugada insone

Deixo aqui três textos de Clarice q me assaltaram na insônia desta última madrugada. Fazem parte do livro A Descoberta do Mundo. 
A Festa do Termômetro Quebrado

Sempre foi e será uma festa para mim quando se quebra em casa um termômetro e liberta-se a gota gorda e contida de mercúrio prateado, ali no chão, dando uma pequena corrida e depois imobilizando-se, imune. Tento pega-lo com cuidado, auxiliada pela agudez de uma folha de papel que passa deslizadoramente por baixo dela. Ou dele, o mercúrio. Que não se pode pegar: no momento em que eu penso que o peguei ele se estilhaça mudo nos meus dedos como mudos fogos de artifício, como o que dizem que nos acontece depois da morte ─ o espírito vivo se espalha em energia solta, pelo ar, pelo cosmo. Que impossibilidade de capturar a gota sensível. Ela simplesmente não deixa e guarda a sua integridade, mesmo quando repartida em inúmeras bolinhas esparsas: mas cada bolinha e um ser a parte, integro, separado. Basta porem que eu alcance ligeiramente uma delas e ela e atraída velozmente pela que esta próxima e forma um conjunto mais cheio, mais redondo. Sonho tanto hoje que quebrei um termômetro como em criança, sonho em milhares de termômetros quebrados e muito mercúrio denso e lunar e frio se espalhando. E eu a brincar, toda seria e concentrada em alto grau, a brincar com a matéria viva de uma enorme quantidade do metal de prata. Imagino-me a mergulhar como num banho nesse vasto mercúrio que imagino saído dos termômetros: ao mergulhar milhares de bolas se soltariam, cada uma por si mesma, grossas, impassíveis. O mercúrio é uma substância isenta. Isenta de que? Nada explico, recuso-me a explicar, recuso-me a ser discursiva: e isento e basta. Parece possuir um frio cérebro que comanda as suas reações. Sinto-me em relação a ele como se eu o amasse e ele nada sentisse por mim, nem sequer uma obediência de objeto. O mercúrio e um objeto que tem vida própria. Lidar com ele e uma experiência não substituível por outra qualquer. Ele não se cede a ninguém. E ninguém consegue por-lhe a mão. O espírito, através do corpo como meio, não se deixa contaminar pela vida, e esse pequeno e faiscante núcleo e o ultimo reduto do ser humano. As feras também possuem esse núcleo irradiante, tanto que elas se conservam íntegras, indomesticáveis e vitais.
Noto que passei do mercúrio ao mistério das feras. E que o mercúrio ─ que constitui matéria lunar ─ faz meditar, leva-me, de uma verdade a outra, ate o núcleo de pureza e integridade que esta em cada um de nos. Quem? Quem não brincou com o termômetro quebrado? CL

Clariceando na madrugada insone

A Rosa Branca
Corola alta: que extrema superfície. Catedral de vidro superfície da superfície, inatingível. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem em coral - crianças sáias abrem bocas de manhã e entoam espírito, leve superfície de espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo minha mão esquerda que é mais fraca e delicada, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor: não te poso tocar. Meu rude pensamento quisera poder cantar teu entendimento de elo e glória.
Tento liberar-me da memória, entender-te como te vê a aurora, como te vê uma cadeira, como te vê outra flor. (Não temas, não quero possuir-te.)
Alço-me, alço-me em direção de tua superfície que já é perfume. Alço-me até atingir minha própria tona, minha própria aparência  - empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina... Numa queda ridícula caí.
Não abaixo minha cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dó-me o coração grosseiro como em amor por um homem. E das mãos tão grandes saem as palavras envergonhadas. CL

Clariceando na madrugada insone


Clariceando na madruga insone

A Mágoa Mortal
          Os telhados sujos a sobrevoar, arrastas no vôo a asa partida. Acima da igreja as ondas do sino te rejeitam ofegante até a areia da praia. O abraço consolador não podes mais suportar pois amor estreita asa doente. Sais gritando pelos ares em horror, sangue escoa pelos telhados. Foge. foge para o espanto da solidão, pousa na rocha, estende o ser ferido que em teu corpo se aninhou: tua asa mais inocente foi atingida. Mas a cidade te fascina. Insistes lúgrebe em brancura carregando o que se tornou o mais precioso: a dor. Voas sobre os tetos em ronda de urubus. A asa pesa pálida na noite descida em pálido pavor. Sobrevoas persistente a cidade fortificada e escurecida — capela, ponte, cemitério, loja fechada, parque morto, floresta adormecida, folha de jornal voa em rua esquecida. Que silêncio na torre quadrada. Espreitas a fortaleza inalcançável. Não, não desças, não finjas que não dói mais — é inútil negar asa partida. Arcanjo abatido, não tens onde pousar. Foge, assombro, foge, ainda é tempo — desdobra com esforço a asa confrangida. Foge, dá à ferida a sua verdadeira medida e mergulha tua asa no mar. C.L.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Perto de um coração selvagem

                Ando lendo a intervalos, entre uma atividade de sala de aula, entre uma escola e outra, Perto do Coração Selvagem, livro de Clarice Lispector q eu ainda não tinha lido. Mais uma vez, Clarice serve como divisa pra coisas e tempos q vivo. Tocando neste coração selvagem, um outro em mim pulsa mais forte. Uma fenda no que sou se alarga, dando passagem a possibilidades de ser que pulsavam em silêncio nas negras sombras do meu não-ser. Fronteiras que se dissolvem num contínuo de existência assim atemporal, mas num instante-já. O grande sertão dentro da gente, como dizia Guimarães Rosa, que é em essência o q verdadeiramente somos. Deixo trechos do livro e um link com uma leitura.

“E foi tão corpo que foi puro espírito. Atravessou os acontecimentos e as horas imaterial, esgueirando-se entre eles com a leveza de um instante.”

“As coisas principais assaltavam-na em quaisquer momentos, também nos vazios, enchendo-os de significados.”


“O silêncio se prolongava à espera do que pudessem dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de uma palavra. Fundiam-se ambos na quietude.”

"...tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais. (...) cada um com um corpo, empurrando-o para frente, querendo sofregamente vivê-lo."



O link: http://www.youtube.com/watch?v=_tKjbkYoi1E

domingo, 6 de abril de 2014

                A grande luta da árvore é continuar produzindo seiva sob um inverno cáustico e violento. Por isso as cascas... Vão se td, folhas, flores e até alguns frágeis galhos... e então ela se permanece porque grossas cascas estão ali e dentro dela, bem no centro, um veio de seiva ainda corre. E td q ela pede é q a primavera não tarde. E td que ela pede é q a primavera arda em sol, em vida.