sábado, 24 de abril de 2010

o barco ébrio de rimbaud

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas
De delirantes céus se abrindo ao vogador:
- Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,
Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?
- Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!
Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.
Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

carne com grampos


um trabalho meu uma fresta em que se re-vela o crístico cabalístico veladura noutra substância daquilo que jaz encoberto no oceano noturno do sísifo self hermético até pro meu ego desvelar é rasgar-se (fernanda meireles)

A Verdade ou a Beleza

Um dogma enraizado em nossa cultura é o de que “a função da arte é criar o Belo”. Será que o que os gregos disseram sobre o assunto deve necessariamente ser a régua e o compasso para todo o mundo, inclusive jovens artistas no Brasil de 2003? Muitos conceitos científicos de Euclides, de Ptolomeu, de Aristóteles e de outros vigoraram como verdades indiscutíveis durante milhares de anos, e de uma hora para outra viraram mera História. O que dizer de preceitos estéticos?
Keats dizia: “A beleza é a verdade, e a verdade é a beleza”. A leitura mais imediata destes versos (e por isso a mais comum) é que, quanto mais bela uma coisa vai ficando, mais verdadeira ela se torna. A verdade só existe nela na medida em que existe beleza. Fazendo a sintonia fina no verso de Keats, eu leio: “A beleza é que é a única coisa real, e só são reais as coisas que contém algum traço de beleza.”
Acho igualmente plausível a versão oposta: a de que as coisas mais verdadeiras são necessariamente mais belas. Neste caso podemos inverter a frase e dizer que “a Verdade é que é a única forma de beleza, e uma coisa só é bela se contiver Verdade”. Ouvimos isto o tempo todo, principalmente quando estamos lidando com artistas do povo, de técnica rude, como Zabé da Loca: “A música deles não é bonita, mas tem muita verdade...” A noção de Arte como uma elevação rumo à Beleza nos deixa pouco à vontade para incluir obras de Goya, de Augusto dos Anjos, de Luís Buñuel ou de David Lynch. O que há de belo naquilo? pergunta-se o espectador.
É aí que surge Fernando Pessoa, com um texto de Álvaro de Campos, “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”, o qual pode ser resumido nesta frase: “Creio poder formular uma estética baseada, não na idéia de beleza, mas na de força – tomando, é claro, a palavra força no seu sentido abstrato e científico.”
As palavras que intuitivamente associo às grandes obras de arte têm muito pouco a ver com o Belo. Os poemas, os filmes, as canções que mais admiro me passam uma sensação de força, de um campo de energia que envolve aquela obra por inteiro e que é ativado ao contato da minha mente, como se bastasse pensar naquele texto para que ele percebesse que eu estava pensando nele e passasse a fazer contato telepático comigo. São como criaturas vivas. (Mas parece que nem todo mundo sente a mesma coisa.)
A diferença entre um poema banal e um bom poema é a mesma que existe entre uma lâmpada apagada e uma lâmpada acesa. O bom poema é o que contém mais força, mais energia, mais vida. Bob Dylan dizia que “um poema é sempre algo capaz de andar com as próprias pernas”. Um grande quadro ou um grande filme parecem ter vida própria, e um gerador de energia próprio. Brota deles uma força mental, algo que liga o motor da nossa emoção, se encaixa nas engrenagens da caixa-de-marchas de nossa mente, e a bota para funcionar. Diante disso, pra que beleza?
Postado por Braulio Tavares em http://mundofantasmo.blogspot.com

Um Soneto do Chico

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio