quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

FC e a antropofagia

          
          (texto de  Bráulio Tavares)
       Existe uma discussão permanente, nos círculos brasileiros de ficção científica, sobre a necessidade (ou a mera possibilidade) de um FC que funcione, entre nós, como o movimento modernista de 1922 funcionou em relação à poesia, a pintura, etc. A discussão vem sendo travada nestes termos pelo menos desde 1988, quando Ivan Carlos Regina publicou o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (veja o texto completo em: http://bit.ly/sosAWC ). A esta altura, todo mundo entende qual era mais ou menos a proposta dos “antropófagos” de 1922, tal como a colocou Oswald de Andrade: devorar a cultura européia como os índios caetés devoraram o Bispo Sardinha. Usá-la não como modelo, mas como combustível, para pôr em movimento uma cultura repleta de elementos nossos.
           O manifesto de ICR critica os autores brasileiros que preferem imitar o modelo norte-americano de FC, repetir os mesmos temas, os mesmos clichês, a mesma linguagem – porque, vamos e venhamos, é muito mais fácil fazer “fanfic” do que literatura. (A “fanfic”, a ficção produzida por fãs, é quando os leitores de Harry Potter, Star Trek, etc. escrevem suas próprias histórias utilizando esses personagens e contextos. Não tem propósito criativo estrutural; apenas o prazer de produzir variantes das obras originais.)
           Diz o manifesto: “(...) Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. / A ficção científica brasileira não existe. / A cópia do modelo estrangeiro cria crianças de olhos arregalados, velhinhos tarados por livros, escritores sem leitores, homens neuróticos, literaturas escapistas, absurdos livros que se resumem a capas e pobreza mental, colônias intelectuais, que procuram, num grotesco imitar, recriar o modus vivendi dos países tecnologicamente desenvolvidos. / A ficção científica nacional não pode vir a reboque do resto do mundo. Ou atingimos sua qualidade ou desaparecemos. (...)”.
          Este é o lado crítico do manifesto, e acho que permanece tão atual quanto em 1988. Deglutir, devorar, antropofagizar, implica sempre em destruir, “quebrar” aquele material em seus elementos constitutivos, usá-lo como eventual banco de dados para produzir uma literatura que não venha do impulso de imitar, mas de dizer verdades pessoais. Literatura é a verdade pessoal de cada um, e para essa verdade emergir precisa desligar esse piloto-automático que gera a fanfic e a imitação.
 
Pesacdo em: http://mundofantasmo.blogspot.com/2011/12/2747-fc-e-antropofagia-23122011.html

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Leituras nada natalinas

              Nesse descanso de Natal aproveitei para derrubar dois volumes da minha estante. Derrubar, aqui, num sentido semelhante a touradas, onde se deve pegar o boi pelo chifre e mostrar quem é quem. Bom, eu tentei.
      O primeiro deles foi "Toda Terça" da Carola Saavedra, chilena radicada no Brasil e já integrada ao grupo da novíssima prosa brasileira, seja lá o que isso signifique e abranja.
    Gostei da narrativa que fluiu bem, numa leitura prazerosa. O livro me trouxe contextos antigos, me fez relembrar episódios dos tempos de faculdade, quando participava do debate acadêmico e do delírio que a ele precedia ou sucedia. Em termos estilísticos, é uma narrativa que eu enquadraria no gênero feminino (outro campo bastante difuso e discutível) e tbm dentro daquilo q se chama prosa pós-moderna/moderna (outra querela acadêmica???) com seus períodos sem pontuação ou com pontuação apenas suscitada pela leitura (próxima do estilo Saramago). A narrativa é construída com duas histórias q correm em separado e que se unem ao final. É um ótimo livro para um dia de chuva, friozinho, pulôver leve e meias nos pés e um caputtino forte nas mãos.
          O segundo livro que carreguei comigo, na verdade, foi uma escolha proposital para um reenfrentamento. Trata-se de "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" da Hilda Hilst. Na primeria vez que li o livro, há uns dois anos, ele me incomodou bastante. São poemas, interpelações da autora a Deus. Mas Deus aqui só pode ser acessado via carne, o único mundo, segundo a poetisa, que ela conhece e através do qual pode se dirigir a Ele. Não são interpelações contemplativas, mas conflituosas e, às vezes, bastante eróticas. Há um Deus dor e vazio q depende da carne humana para existir, existência divina que sangra a existência humana. Um mistério de dor e amor. Só lendo.
       São ao todo vinte e um poemas que li e reli neste fim-de-semana, com a boca, às vezes, seca, outras vezes, salivante. Só lendo.

É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei.
O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos.
Mas tu sabes da delícia da carne.
Dos encaixes que inventaste.
De toques.
Do formoso das hastes.
Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola.
São palavras róseas.
Mas sangram.
Se feitas de carne.
Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes.
Sim, meu Senhor,
Te percebo.
Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem
            xxxxxxxxxxx 

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.
                   xxxxxxxxxxx
     Minha admiração por Hilda Hilst só se fez maior e maior se fez tb minha fome aguda a qual matemáticas abstratas não saciam porque Deus,
"Teu alimento é uma serva
Que bem te serve à mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.

Abre teus olhos, meu Deus,
Come de mim a tua fome.

Abre a tua boca. E grita este nome meu."
                                              26/12/2011

domingo, 25 de dezembro de 2011

Troças drummondianas

PRIMEIRO AUTOMÓVEL
Qeu coisa-bicho
que estranheza preto-lustrosa
evém-vindo pelo barro afora?

É o automóvel de Chico Osório
é o anúncio da nova aurora
é o primeiro carro, o Ford primeiro
é a sentença do fim do cavalo
do fim da tropa, do fim da roda
do carro de boi.

Lá vem puxado por junta de bois.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pausa

           Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa.
           Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?
           Com um ciclista tombado?
           Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo?
           E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.
           E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois __ Dom Quixote ou Sancho? __ vive uma vida mais intensa e portanto mais verdadeira...
           E paira no ar eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.
           Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor.
           E agora?
          Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa só me resta citar o terrível dilema de Stechetti:
          "Io sonno un poeta o sonno un imbecile?"
         Alternativa, aliás, extensiva ao leitor de poesia...
          A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.
         E daí?
         __ Mas o melhor __ pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança __, o melhor é repor depressa os óculos no nariz.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Memórias de menina cantadas no Boitempo

CONVERSA
Há sempre uma fazenda na conversa
bois pastando na sala de visitas
divisas disputadas, cercas a fazer
porcos a cevar
a bateção dos pastos
a pisadura da égua
de testa - e vejo o céu - testa estrelada

Há sem-pre
uma família na conversa.
A família é toda a história: primos
desde os primeiros degredados
filhos de Eva
até Quinquim Sô Lu Janjão Tatau
Nonô Tavinho Ziza Zito
e tios, tios-avós, de tão barbado-brancos
tão seculares, que são árvores.

Seus passos arrastam folhas. Ninhos
na moita do bigode. Aqui presentes
avós há muito falecidos. Mas falecem
deveras os avós?
Alguém deste clã é bobo de morrer?
A conversa o restaura e faz eterno.

Há sempre uma fazenda, uma família
entreliçadas na conversa:
a mula &  o muladeiro
o casamento, o cocho, a herança, o dote, a aguada
o poder, o brasão, o vasto isolamento
da terra, dos parentes sobre a terra.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Memórias de menina cantadas no Boitempo

IRMÃO, IRMÃOS
Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.

Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,
o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objetos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade se der irmão futuro, antigo e sempre?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Memórias de menina cantadas no Boitempo

PAÍS DO AÇÚCAR
Começar pelo canudo,
pasar ao branco pastel
de nata, doçura em prata,
e terminar no pudim?

Pois sim.
E o que bóia na esmeralda
da compoteira:
molengos figos em calda,
e o que é cristal em laranja,
pêssego, cidra - vidrados?

A gula, faz tanto tempo,
cristalizada.


(Relembrando os doces  cristalizados do meu pai  e da minha tia.)