sexta-feira, 23 de julho de 2010

Tiro nas letras - Cláudia Lage

Trecho da coluna de Cláudia Lage no Jornal Literário Rascunho. Sempre uma leitura agradável .


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Quando Raul Pompéia suicidou-se com um tiro, aos trinta e dois anos, em uma triste noite de natal, deixando uma controvertida obra composta de novelas, romances e crônicas, não podia prever que um século depois, um rapaz de dezessete anos tiraria um resumo do seu livro Ateneu da mochila, se sentaria na cadeira de uma escola com o jeans surrado de todos os dias, balançaria nervosamente os tênis durante toda a aula, enquanto respondia, valendo um ponto cada, questões desse tipo: a) O escritor naturalista Raul Pompéia morreu de tuberculose. b) O escritor romântico Raul Pompéia era homossexual. c) Raul Pompéia era natural do Rio de Janeiro. d) O escritor Raul Pompéia suicidou-se.

Do mesmo modo, Castro Alves quando escreveu Navio negreiro, aos vinte e um anos, tomado pela densidade poética e pela forte questão humana que envolvia a defesa da emancipação dos escravos, não poderia imaginar que cem anos depois trechos do seu poema seriam impressos na prova de uma matéria chamada Literatura Brasileira, e, muito menos, poderia supor, em seus maiores delírios, que as perguntas feitas a partir de sua obra seriam: 1) O autor deste poema pertence a qual fase do romantismo?, 2) Quais as características do movimento romântico expressas em Castro Alves?

Muito menos Augusto dos Anjos, que falava com a morte tão de perto em seus poemas a ponto de ela ter chegado cedo a sua vida na forma de uma pneumonia fatal, aos trinta anos, não poderia conceber que, dez décadas depois, uma professora em início de carreira, apaixonada desde sempre por seus versos de angústia e espanto, entrou em depressão profunda após uma aula de literatura, na qual por pressão do programa curricular, da carga horária apertada e da data da prova, teve que resumir a obra de seu poeta preferido em duas frases: Os versos mórbidos de Augusto dos Anjos ofenderam a métrica parnasiana e os bons costumes da lírica, ela ditou, trêmula, do livro didático para os alunos. O pessimismo do poeta aliado à ciência acusava a degradação humana por meio de analogias com processos químicos e biológicos, disse, lúgubre. De-gra, o quê, professora?, um aluno perguntou, enquanto copiava. De-gra-da-ção hu-ma-na, repetiu, perplexa, e, naquela noite, queimou em silêncio profundo as cinqüenta cópias do poema O Deus-verme, que havia escolhido e impresso para ler e discutir na aula.

A íntegra está em:
http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=65&ordem=2545&semlimite=todos

sábado, 10 de julho de 2010

O amor de MAIAKOSKI

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa,.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em enumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casa.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Maiakóvski e o Futuro




Vladimir Maiakóvski era obcecado com o futuro, e não só por fazer parte dos futuristas russos. Os futuristas eram poetas anárquicos, irreverentes, meio plebeus, que usavam linguagem das ruas, e se contrapunham ao simbolismo russo, feito de poetas intelectualizados, sofisticados, um tanto elitistas. O futurismo era uma coisa meio hip-hop para a época – a Rússia dos anos 1920. O maior poema de Maiakóvski nunca foi (penso eu) inteiramente traduzido em português. Seu título russo é “Pro eto” – nas variadas traduções, “Sobre isto”, “A respeito disto”, “About that”, etc. É um poema-livro em várias partes. A última parte, chamada “O Amor”, foi traduzida para o português por Ney Costa Santos, musicada por Caetano Veloso, e gravada por Gal Costa sob o título “O amor – sobre o poema de Vladimir Maiakóvski”, em seu álbum Fantasia, de 1981.

Neste trecho do poema, Maiakóvski se dirige aos cientistas do século XXX, porque prevê que sua amada será ressuscitada por eles no futuro: “Talvez quem sabe um dia / por uma alameda do zoológico / ela também chegará / ela que também amava os animais / entrará sorridente assim como está / na foto sobre a mesa / ela é tão bonita / que na certa / eles a resssuscitarão”.

Maiakóvski tinha duas idéias fixas: a do suicídio e a da ressurreição. Como se ele confiasse tanto no futuro que dissesse a si mesmo que podia meter uma bala na cabeça toda vez que tivesse uma desilusão amorosa: a Ciência o traria de volta. Ele diz: “O Século Trinta vencerá / o coração destroçado já / pelas mesquinharias / agora vamos alcançar / tudo o que não podemos amar na vida / com o estrelar das noites inumeráveis”.

Até aqui, a canção de Caetano tem uma melodia discreta, intimista. Mas quando começa o refrão, a música começa a galgar patamares sucessivos de modulação, de subida de tom, de um grito que parece querer alcançar cada vez mais longe, mais perto do Século Trinta: “Ressuscita-me! / Ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro. / Ressuscita-me! / Lutando contra as misérias / do cotidiano, / ressuscita-me por isso. / Ressuscita-me! / Quero acabar de viver o que me cabe / minha vida / para que não mais existam / amores servis...”

Como diz Fernando Peixoto, é “um poema sobre um amor trágico e desesperado... num clima quase permanente de alta tensão”. Maiakóvski não pensa em renascer por um milagre. Dizem que ele acreditava sinceramente que no futuro seria possível ressuscitar alguém. Para quê? O poema finaliza: “Ressuscita-me / para que a partir de hoje / a família se transforme / e o pai seja pelo menos o Universo / e a mãe seja no mínimo a Terra”. O que ecoa, invertidamente, no grito igualmente desesperado de Lennon em “Yer Blues”: “My father was of the sky / my mother was of the Earth / but I’m from the Universe / and you know what it’s worth”. Poetas de uma época em que o Futuro e o Universo estão mesmo no cerne de cada tragédia e de cada paixão.
  do Bráulio Tavares no seu mundo fantasmo