quinta-feira, 29 de maio de 2014

Clariceando na madrugada insone

Deixo aqui três textos de Clarice q me assaltaram na insônia desta última madrugada. Fazem parte do livro A Descoberta do Mundo. 
A Festa do Termômetro Quebrado

Sempre foi e será uma festa para mim quando se quebra em casa um termômetro e liberta-se a gota gorda e contida de mercúrio prateado, ali no chão, dando uma pequena corrida e depois imobilizando-se, imune. Tento pega-lo com cuidado, auxiliada pela agudez de uma folha de papel que passa deslizadoramente por baixo dela. Ou dele, o mercúrio. Que não se pode pegar: no momento em que eu penso que o peguei ele se estilhaça mudo nos meus dedos como mudos fogos de artifício, como o que dizem que nos acontece depois da morte ─ o espírito vivo se espalha em energia solta, pelo ar, pelo cosmo. Que impossibilidade de capturar a gota sensível. Ela simplesmente não deixa e guarda a sua integridade, mesmo quando repartida em inúmeras bolinhas esparsas: mas cada bolinha e um ser a parte, integro, separado. Basta porem que eu alcance ligeiramente uma delas e ela e atraída velozmente pela que esta próxima e forma um conjunto mais cheio, mais redondo. Sonho tanto hoje que quebrei um termômetro como em criança, sonho em milhares de termômetros quebrados e muito mercúrio denso e lunar e frio se espalhando. E eu a brincar, toda seria e concentrada em alto grau, a brincar com a matéria viva de uma enorme quantidade do metal de prata. Imagino-me a mergulhar como num banho nesse vasto mercúrio que imagino saído dos termômetros: ao mergulhar milhares de bolas se soltariam, cada uma por si mesma, grossas, impassíveis. O mercúrio é uma substância isenta. Isenta de que? Nada explico, recuso-me a explicar, recuso-me a ser discursiva: e isento e basta. Parece possuir um frio cérebro que comanda as suas reações. Sinto-me em relação a ele como se eu o amasse e ele nada sentisse por mim, nem sequer uma obediência de objeto. O mercúrio e um objeto que tem vida própria. Lidar com ele e uma experiência não substituível por outra qualquer. Ele não se cede a ninguém. E ninguém consegue por-lhe a mão. O espírito, através do corpo como meio, não se deixa contaminar pela vida, e esse pequeno e faiscante núcleo e o ultimo reduto do ser humano. As feras também possuem esse núcleo irradiante, tanto que elas se conservam íntegras, indomesticáveis e vitais.
Noto que passei do mercúrio ao mistério das feras. E que o mercúrio ─ que constitui matéria lunar ─ faz meditar, leva-me, de uma verdade a outra, ate o núcleo de pureza e integridade que esta em cada um de nos. Quem? Quem não brincou com o termômetro quebrado? CL

Clariceando na madrugada insone

A Rosa Branca
Corola alta: que extrema superfície. Catedral de vidro superfície da superfície, inatingível. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem em coral - crianças sáias abrem bocas de manhã e entoam espírito, leve superfície de espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo minha mão esquerda que é mais fraca e delicada, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor: não te poso tocar. Meu rude pensamento quisera poder cantar teu entendimento de elo e glória.
Tento liberar-me da memória, entender-te como te vê a aurora, como te vê uma cadeira, como te vê outra flor. (Não temas, não quero possuir-te.)
Alço-me, alço-me em direção de tua superfície que já é perfume. Alço-me até atingir minha própria tona, minha própria aparência  - empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina... Numa queda ridícula caí.
Não abaixo minha cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dó-me o coração grosseiro como em amor por um homem. E das mãos tão grandes saem as palavras envergonhadas. CL

Clariceando na madrugada insone


Clariceando na madruga insone

A Mágoa Mortal
          Os telhados sujos a sobrevoar, arrastas no vôo a asa partida. Acima da igreja as ondas do sino te rejeitam ofegante até a areia da praia. O abraço consolador não podes mais suportar pois amor estreita asa doente. Sais gritando pelos ares em horror, sangue escoa pelos telhados. Foge. foge para o espanto da solidão, pousa na rocha, estende o ser ferido que em teu corpo se aninhou: tua asa mais inocente foi atingida. Mas a cidade te fascina. Insistes lúgrebe em brancura carregando o que se tornou o mais precioso: a dor. Voas sobre os tetos em ronda de urubus. A asa pesa pálida na noite descida em pálido pavor. Sobrevoas persistente a cidade fortificada e escurecida — capela, ponte, cemitério, loja fechada, parque morto, floresta adormecida, folha de jornal voa em rua esquecida. Que silêncio na torre quadrada. Espreitas a fortaleza inalcançável. Não, não desças, não finjas que não dói mais — é inútil negar asa partida. Arcanjo abatido, não tens onde pousar. Foge, assombro, foge, ainda é tempo — desdobra com esforço a asa confrangida. Foge, dá à ferida a sua verdadeira medida e mergulha tua asa no mar. C.L.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Perto de um coração selvagem

                Ando lendo a intervalos, entre uma atividade de sala de aula, entre uma escola e outra, Perto do Coração Selvagem, livro de Clarice Lispector q eu ainda não tinha lido. Mais uma vez, Clarice serve como divisa pra coisas e tempos q vivo. Tocando neste coração selvagem, um outro em mim pulsa mais forte. Uma fenda no que sou se alarga, dando passagem a possibilidades de ser que pulsavam em silêncio nas negras sombras do meu não-ser. Fronteiras que se dissolvem num contínuo de existência assim atemporal, mas num instante-já. O grande sertão dentro da gente, como dizia Guimarães Rosa, que é em essência o q verdadeiramente somos. Deixo trechos do livro e um link com uma leitura.

“E foi tão corpo que foi puro espírito. Atravessou os acontecimentos e as horas imaterial, esgueirando-se entre eles com a leveza de um instante.”

“As coisas principais assaltavam-na em quaisquer momentos, também nos vazios, enchendo-os de significados.”


“O silêncio se prolongava à espera do que pudessem dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de uma palavra. Fundiam-se ambos na quietude.”

"...tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais. (...) cada um com um corpo, empurrando-o para frente, querendo sofregamente vivê-lo."



O link: http://www.youtube.com/watch?v=_tKjbkYoi1E

domingo, 6 de abril de 2014

                A grande luta da árvore é continuar produzindo seiva sob um inverno cáustico e violento. Por isso as cascas... Vão se td, folhas, flores e até alguns frágeis galhos... e então ela se permanece porque grossas cascas estão ali e dentro dela, bem no centro, um veio de seiva ainda corre. E td q ela pede é q a primavera não tarde. E td que ela pede é q a primavera arda em sol, em vida.



sábado, 5 de abril de 2014

outro destitulado

Primeiro: eu não tenho medo de merda nenhuma;
Segundo: Aprendi a sorrir pra não me encherem o saco;
Terceiro: to de saco cheio de td.

(sem título)

        Faz uns dias q eu ando assim... longe do mundo. E agora, como um raio, me caiu a percepção de que esse tipo estado me foi sendo construído ao longo do tempo, na sucessão de caminhos dessa minha estada aqui. E aí eu percebo q esse planar me traz algumas coisas q só hj, só nesse momento compreendo. Hj percebo como sou difícil de ser capturada, embora queira absurdamente sê-lo. Queria um vínculo assim  q me prendesse a um estado, a uma situação, a algo q me fizesse querer descer pra descansar as asas. Sinto-me, absurdamente, como um navio a deriva no alto-mar e isso não me assusta, não me alegra, é algo q eu sou, apenas isso. Pra mim tanto faz. E não é pra isso q se está por aqui.
      Então me surge essa sede... Sedento ser em vôo, cansado de céu... mas sem nada que o prenda em gozo ao chão. E eu aqui escutando Rolling Stones, desejando algo que me bata na veia, numa overdose de vida que me liberte de mim mesma.
      É... essa sede foi se acumulando e me deixando cada vez mais longe de tudo que é meia medida, com cansaço de tudo q é bom senso. Td por um terremoto q me tire a solidez, td por um vento ensandecido q me bloqueie as asas. Conheci alguém q disse q queria morrer com um meteoro,  um cometa, algo assim lhe explodindo no meio do peito. Eu não quero morrer assim, eu quero viver assim. Onde há vida nesse mundo?
                                                                               Fernanda Meireles, 05/04/2014

Pra fechar, um rolling stones: https://www.youtube.com/watch?v=B51A6bcMeDY


domingo, 23 de março de 2014

Legião e Raul - os meus começos, meus tropeços, meus preços.

            E aí um dia vc percebe q não está preparada para a estrada em linha reta, pois, o tempo todo, vc foi metal contra as nuvens. Vc percebe que seu ser pede sangue, seu pp sangue. Sereníssima, vc conseguiu o equilíbrio cortejando a insanidade. Mas há tanta saudade dessa insanidade, abismos em espaço-tempo, ancorados no infinito. E aquela saudade imensa de algo q vc ainda não viveu continua ali, mesmo q escondida por muros de racionalidade. E esses muros têm de cair, precisam virar escombros pq só a partir deles sua natureza fenix se manifesta. Uma necessidade absurda da escuridão que alimenta a posterior aurora na qual seu pp sorriso se plenifica, grande deusa batizada em sangue. Ter sede de abismos e não encontrá-los pq o mundo e a vida teimam em andar em linha reta. A terra rompendo-se sob seus pés e seu corpo solto no espaço; um parto, o parto de mim mesma, envolta em sangue e o vagido da criança em sua primeira inspiração, isso é o q ando pedindo à Grande Origem de tudo. Não admito que tenha ganhos todas as batalhas, há de haver outras maiores em que eu me lançar e nas quais apostar minha alma pq o medo de perder eu não tenho, pq, eu posso até perder, mas isso, absolutamente, faz parte do jogo. É nesse grande jogo cósmico que habito de forma mais plena. Quando vc se habitua a ser  queimada em fogo, nada q seja meio termo te realiza. A consumação de td, esse é seu único e grande pedido final.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Texto sem data

                Hoje foi um dia de silêncio e trabalho. Passei o dia em meio a papéis, recibos velhos e novos, revi antigas anotações e repassei a agenda usada, mesmo q de forma bastante descontínua, no ano passado. Então, me deparei com dois textos meus sem datação. Um talvez seja de janeiro de 2013, mas o outro não sei de quando é. É esse segundo texto q trago aqui para o blog. Vamos a ele:

“Mais uma vez acordo por volta das três e trinta da madrugada. Há um silêncio absoluto em tudo à minha volta. Árvores, animais, noite... nenhuma folha se move, não há canto de coruja alguma. Apenas eu, tb, em silêncio, olho as estrelas caladas num céu aberto e de profundo azul.
Acima da minha casa, bem acima, está o Cruzeiro do Sul, parecendo traduzir q naquele silêncio e naquela imobilidade absurdos, mesmo neles, há uma direção, há uma indicação de rotas para navegantes de mares de diversa essência.
Dentro de mim, há tb um silêncio tumultuado de coisas descabidas, inacabadas, mal começadas, silenciadas. Sento-me à beira de mim para conversar com elas. São tristes, tortas e feias, são violentas, são más. São, principalmente, eu mesma.
E eu? O q sou?
Nessa esquina desse pensar obtuso, deparo-me com aquela q considero umas das principais marcas de FPessoa em mim. O texto, através do qual, fui apresentada ao mar português q é Pessoa, um oceano profundo, vasto, às vezes calmo, às vezes violento. Para mim, a maior violência de Pessoa é a sua suprema lucidez, jogada, assim, de chofre na tua cara, com duas, três palavras.
O texto de q falo é a carta em q Álvaro de Campos narra o dia em que conheceu aquele q passaria a chamar de mestre, Caeiro. E Álvaro lhe pergunta se o mestre estava contente consigo. Ao q Caeiro responde: “Não: estou contente”.
Esta resposta assim, curta e simples, se alojou como um disparo certeiro no centro de tudo que eu era então. 22 anos eu tinha. Ela andou uma semana comigo, pesando meu ser. E então, um dia, ela me caiu ao colo como um maço de flores, como uma estrela que se espalha em luz pelo nada, como uma criança q ri inteira. E eu a compreendi com a lógica da alma q é maior q qualquer linguagem humana. Eu a compreendi com o silêncio.
Desde então, ela anda comigo transformada. Doce brisa, violenta certeza.
Desde então, eu tento apenas ser.  Tarefa inglória no mundo das manifestações que te quer tb manifestado, que te pergunta diariamente, na maioria das vezes em silêncio, só com os olhos, quem tu és.
E eu aqui sentada à beira de mim, habitando o silêncio e a noite, quero apenas me calar, cansada desse existir multidiverso. Quero esgotar tudo, até não sobrar nada, até que a própria resposta de Caeiro se dissolva como nuvem no céu noturno, ele mesmo ausente de qualquer brilho, ausente até de si.
Nada... nada... coisa alguma tem importância...
O que é o amarelo?
O que é uma flor à beira do rio?
O que sou eu à beira de mim?
Nada... nada.. coisa alguma tem importância. ” 
                                                                               Fernanda Meireles
                                           
                                       

                                             

domingo, 12 de janeiro de 2014

+Pessoa, pq, para alguns, a noite desce mais forte.

 Para aqueles a quem o abraço dos deuses cobra seu preço, principalmente em noites em que vai alta a lua e vai forte a dor, dois poemas de Fernando Pessoa, na voz do heterônimo Alexander Search:

"Por vezes, no meio da vida, subitamente
Surge uma mudança como uma aberração,
Um senso de vazio, enorme e diferente,
E uma vaga e profunda desolação.
Uma sensação de ser deixado só
E mais que abandono é o seu sentido
(...)
É uma sensação de quase ter morrido.
Morto e consciente, é estranho dizer.
Uma vertigem da própria razão,
Uma agonia vaga e definida
De algo sufocado em aflição."

 ......................

"Febo há muito desceu no Ocidente
Por trás dos montes de rosa tingidos;
Eu, sofrendo, cerro os olhos doridos
Olhando o mundo que ante mim se estende.
Pois pela noite o rio silente desce,
Oculto no escuro já voa o morcego;
Mas, nocturna, a alma não tem sossego,
É na escuridão que meu horror cresce.
Odeio a noite que a mim se assemelha,
Só que em mim, nem astro ou centelha
Dispersa as nuvens da alma e da mente.
Mas como a noite em seu manto sombrio,
Calado e escondido me quedo no frio,
Envolto em dúvidas e delas temente."




Gosto muito dessa foto de Pessoa. O olhar divisa abismos pelos quais é necessário se lançar e, solitário, o ser precisa se recriar. Para alguns, a noite é sempre maior.
Fernanda Meireles, 12/01/2014


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Qqr coisa

Final de tarde de verão
Vontade rabiscar qqr coisa
Que brilhe assim
Entre um poente
E uma pequena estrela
Q surge tímida do outro lado do azul.
Escutando three ways,
Por onde vão meus olhos
Nessa divisa regida por Anúbis?
Escrever qqr coisa entre fresca e cálida,
Qqr coisa em q caiba
Um leve disparar do coração,
Qqr coisa q eleve
Mais alto
O vôo do meu ser.
Escrever qqr coisa
Q seja mar,
Floresta,
Céus.
Tudo se desmanchando
No fluir.
Tudo escorrendo,
areia no deserto
do Sem-fim.
Qqr coisa
Q faça iluminar seu rosto.
           Fernanda Meireles, 06/01/2014