domingo, 28 de novembro de 2010

Minha pátria é minha língua

O DNA da língua - Com todos os seus erros, grosserias e belezas

QUEM CONHECEU A CASA DE TOM JOBIM no alto do Jardim Botânico, no Rio, não conseguia deixar de se surpreender. Na estante de sua sala, poucos livros sobre música. Mas, ocupando as prateleiras, tomando a tampa do piano e empilhando-se sobre poltronas, alguns livros de poesia -e muitos dicionários. Dezenas deles, em várias línguas e de todos os gêneros: analógico, de sinônimos, tupi-guarani, de gíria brasileira e americana, de folclore, de pássaros.

Fazia sentido. As notas musicais, que Tom usava para trabalhar, já estavam todas na cabeça. Mas as palavras, sua grande paixão, não podiam ficar soltas pela casa. Seu lugar era dentro dos livros, em forma de poema, ou dos dicionários, como exércitos de reserva, de plantão para o combate, para a esgrima das ideias. Elas dominavam também boa parte das conversas de Tom em mesa de bar. E não importava muito o interlocutor. Na verdade, era como se ele dialogasse com elas, mais do que com a pessoa à sua frente. Uma de suas fixações eram as palavras que começavam com "al", denotando a presença árabe na península Ibérica e, daí, entre nós. "Alarido, alaúde, alazão, albornoz, Albuquerque, alcachofra, alcaçuz, alcaide, alcaparra, alcateia, alcatifa...", ele as ia desfiando, até que algum engraçadinho -o que era invariável- o interrompesse, citando o gângster Al Capone. Acho que ele desfiava o rosário de "als" para provocar a menção a Al Capone -e, se era assim, não fui o único a morder a isca.

Tom não cairia na armadilha de confundi-las com outras palavras em "al", mas não de origem árabe, como "albatroz", do francês "albatros", por intermédio do inglês "albatross", o qual, incrível, vem do português "alcatraz", uma espécie de pelicano -e esta, sim, talvez proveniente do árabe "al-gattás". Ou as latinas "alegria", "alegoria" e "aleluia", a francesa "alergia", as hispânicas "almofada" e "alpiste", a inglesa "alumínio". Tom não cometeria esse erro porque gostava de estudar, fazia a lição de casa e, claro, devia ter mais de um dicionário etimológico -entre os quais o ótimo "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa", do filólogo carioca Antônio Geraldo da Cunha, publicado originalmente em 1982 e que está saindo em nova e enriquecida edição [Lexikon/Faperj, 744 págs., R$ 74,90].

A etimologia -"ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras e sua evolução histórica", segundo o próprio dicionário- é uma espécie de genealogia da língua. E um dicionário do gênero é o seu, digamos, DNA. Para quem gosta das palavras, a leitura de um dicionário etimológico pode ser tão emocionante quanto a de um romance de capa e espada. Aliás, os quiproquós não são muito diferentes: a língua também comporta a luta de classes, a sobrevivência das espécies, manobras econômicas, trocas comerciais, invasões estrangeiras, correrias, perseguições, fugas -a diferença é que, em vez de damas de peruca empoada e heróis mascarados, os protagonistas são as palavras. Há palavras que entram na língua disfarçadas e pela janela; outras que desaparecem e são esquecidas, e, um dia, são encontradas mortas num sebo de livros; e ainda outras que surgem de repente, brilham por um momento nos salões, e também acabam abandonadas. Um dicionário etimológico conta, em pílulas, tudo o que aconteceu na língua.

Ele nos ensina também sobre a nossa própria índole. Quem diria, por exemplo, que palavras como "botequim", "malandro" e "baderna" -três vocábulos que, às vezes, andam juntos até altas horas- não vieram do carioquês castiço ou de uma remota raiz africana, mas do... italiano? Sendo que "baderna" (desordem, confusão) nasceu de uma dançarina italiana, Maria Baderna, que atuou no Rio em 1851 e deixou os estudantes brasileiros em polvorosa.

E quem diria também que "bossa" (inchação, protuberância, mas também aptidão, queda, vocação) vem do francês "bosse" e se usa em português desde o século 18? Ou que Garrincha, o jogador, cujo nome derivou de um passarinho chamado garricha, pode ter a ver com "garrir", do latim "garrire", significando ressoar, tagarelar, chilrear? E não é interessante que "moleque" (indivíduo sem palavra ou sem seriedade, canalha, velhaco, patife) esteja regredindo em São Paulo a seu sentido original em quimbundo, "mu'leke", menino, rapazote?

Antônio Geraldo da Cunha (1924-99) não viveu para ver verbos como "deletar", "googlar" e "twittar" se intrometerem na língua do Brasil -com uma facilidade que não encontram em outras terras. E seus continuadores preferiram deixar esses estrupícios, por enquanto, de fora do dicionário. Mas tais verbos têm uma boa chance de, um dia, encontrar abrigo no "Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa", do estudioso cearense João Gomes da Silveira, que acaba de sair pela WMF Martins Fontes [980 págs., R$ 98].

Neste, que se subintitula "Riqueza idiomática das frases verbais; uma hiperoficina de gírias e outros modismos luso-brasileiros", o critério é mais liberal -basta que o povo adote uma expressão para que ela comece a fazer parte da língua. De "abafar a banca" (ganhar no jogo todo o dinheiro do banqueiro), gíria do Rio, à coimbrã "zupar na bisca" (sair habilmente de qualquer embaraço), passam-se mais de 900 páginas de chulices menos ou mais conhecidas, mas quase todas deliciosas.

Este é um livro que, apesar do peso, pode ser levado para e lido em qualquer lugar, sozinho ou em grupo, com a garantia de gerar prazer. O prazer, por exemplo, de descobrir as meiguices da língua: "acatitar os olhos" (arregalar os olhos), "andar à esparavela" (andar nu), "armar-se em parvo" (fazer-se de bobo), "bater com as dez" (morrer), "estar-se nas tintas" (não ligar, não dar bola), "ladrar à lua" (falar sem ser ouvido); "lamber embira" (passar miséria), "passar à espada" (namorar muitas mulheres) -a maioria, de origem lusa, mas que podíamos aplicar aqui. Permite também fazer mau juízo de expressões inocentes: "alçar a caganeta" (ir-se embora), "botar o cu na goteira" (ficar prevenido), "comer escoteiro" (comer um único tipo de alimento, sem acompanhamento), "melar a vara" (estragar um negócio), "meter nos cornos" (decorar, fixar na memória), "tomar na cuia" (ser vencido, perder uma questão).

É verdade que, em muitos casos, a expressão, além de suspeita, é mesmo culpada. Pode-se, por exemplo, afogar o ganso, o grilo, o jegue e o Judas, tudo com o mesmo sentido. No sentido contrário, dependendo da região do Brasil ou de Portugal, pode-se dar a goiaba, a maricotinha, o boga, o chicote, o disco, o fiofó, o frosquete, o furico, o oitão, o oiti, o tareco e, mais universalmente, o rabo.

Aliás, quando se trata de inventar expressões para descrever o ato sexual, brasileiros e portugueses são tão criativos que nem parecem religiosos -a não ser que toda essa riqueza de chulices se refira exclusivamente ao sexo para fins de reprodução.

O dicionário de Gomes da Silveira [leia entrevista em folha.com/ilustrissima] pereniza expressões outrora comuns e hoje em risco de extinção, como "abrir o bué" (chorar), "deixar a pão e laranja" (deixar passar fome), "ir à garra" (perder o rumo, ficar à deriva) e tantas outras. De uma ou duas décadas para cá, a língua parece estar sendo reduzida a um vocabulário básico -a maioria das pessoas fala e escreve do mesmo jeito, niveladas, creio, pela mediocridade da televisão. Com isso, livros como este dicionário serão indispensáveis para o dia em que a língua for efetivamente restaurada, com todos os seus erros, grosserias e belezas. Tom Jobim iria adorar.

RUY CASTRO, F São Paulo, 28.11.2010

domingo, 21 de novembro de 2010

Mestres da Literatura - Guimarães Rosa

A seqüência de links abaixo traz um documentário sobre GRosa produzido pelo Ministério da Educação. Muito bom.

http://www.youtube.com/watch?v=zfuFrCXpdeI&feature=related 

http://www.youtube.com/watch?v=_fh25aVz6RM 

http://www.youtube.com/watch?v=AJeF2pfNQVo&feature=related 

Che fece... il gran rifiuto

A alguns homens chega um dia
em que devem o grande Sim ou o grande Não
dizer. Surge imediatamente aquele que tem
pronto em seu íntimo o Sim, e dizendo-o

prossegue na honra e em sua convicção.
Aquele que negou não se arrepende. Se lhe perguntassem de novo,
não, diria outra vez. E contudo o acabrunha
aquele não - justo - durante toda a sua vida.

Mais um de FPessoa

Por que abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.

Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos a fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.

Sensação de ser só a minha espinha.

As espadas.

sábado, 20 de novembro de 2010

Inverno

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
         
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
 Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois
Pouco antes de o ocidente se assombrar
                        Ad. Calcanhoto e Antônio Cícero

A Voz de Deus

Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de ideia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.

Perseidas

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

trecho do Primeiro Fausto de F Pessoa

"Essa simplicidade d´alma
Possuída não só dos inocentes
mas até dos viciosos, criminosos...
...................................................
...................essa simplicidade
Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso
Que o pensamento friamente ocupa."

                 .................  
Eu e minha paixão por Fernando Pessoa... Mas como não se apaixonar por alguém que rasga sua alma sem a menor compaixão?  Como não se apaixonar por quem deixa seu espírito nu e completamente entregue? Só ele dobra minha espinha.  Por F Pessoa eu faria qqr coisa q ele ordenasse, qualquer servidão extrema e voluntária, porque o escravo é aquele que melhor conhece o dono... quem se sujeita à face negra, beija a face luminosa... o que stá abaixo é como o que stá ao alto... maktub... quem tiver  de compreender q compreenda!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O museu Casa de Guimarães Rosa

A venda q foi do pai dele:


 
"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa."


"Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era - ficar sendo!"


"Todo abismo é navegável a barquinhos de papel"

O museu Casa de Guimarães Rosa

A casa onde ele morou quando pequeno:



"Viver é um descuido prosseguido.
Mas quem é que sabe como?
Viver...
o senhor já sabe: viver é etcétera..."


"Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o lugar. Viver é muito perigoso..."



"Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar."


"Para onde nos atrai o azul?"

cenas de cordisburgo

Casas:




cenas de cordisburgo

A antiga estação de trem e a banda:

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

visitando guimarães rosa

Nesse feriado, vou realizar um sonho de muito tempo: vou conhecer a terra de Guimarães Rosa. Estou de partida pra Cordisburgo. Espero encontrar por lá algumas das veredas que ele plantou aqui dentro.

sábado, 6 de novembro de 2010

a poem for a lonely saturday



I Wandered Lonely As A Cloud

I wandered lonely as a cloud
That floats on high o'er vales and hills,
When all at once I saw a crowd,
A host, of golden daffodils;
Beside the lake, beneath the trees,
Fluttering and dancing in the breeze.

Continuous as the stars that shine
And twinkle on the milky way,
They stretched in never-ending line
Along the margin of a bay:
Ten thousand saw I at a glance,
Tossing their heads in sprightly dance.

The waves beside them danced, but they
Out-did the sparkling leaves in glee;
A poet could not be but gay,
In such a jocund company!
I gazed—and gazed—but little thought
What wealth the show to me had brought:

For oft, when on my couch I lie
In vacant or in pensive mood,
They flash upon that inward eye
Which is the bliss of solitude;
And then my heart with pleasure fills,
And dances with the daffodils.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Orides Fontela

Hoje, lendo o Rascunho, reecontrei a obra de Orides Fontela (1940 — 1998) , mais uma poetisa brasileira que não recebeu as benesses do 'boom' literário nacional. Afinal nunca se produziu tanta literatura no Brasil, mas ainda se registram casos de poetas q morrem na miséria, em sanatórios ou esquecidos pelas esquinas da cidade. O texto de Fernando Monteiro ("E para que ser poeta em tempos de penúria?"), no Rascunho de outubro 2010, é um grito de denúncia contra o mundo acadêmico e o mundo editorial, aquele com seus bisturis e sua assepsia e este que, em função de sua ânsia econômica,  prefere os autores facilmente digeríveis aos herméticos ou cabralinos. Foi o q fizemos com Orides e com Piva.
Fernanda Meireles
"Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1940. Começou a escrever poemas aos sete anos de idade. Como ela mesma dizia, sua família "não tinha base cultural, meu pai era operário analfabeto, de modo que a cultura que peguei foi na base do ginásio, escola normal e leitura". Aos 27 anos, deixou sua cidade natal e veio morar em São Paulo, com dois sonhos na cabeça: entrar na USP e publicar um livro. Cumpriu os dois: fez Filosofia e publicou seu primeiro livro, Transposição , com a ajuda do professor Davi Arrigucci Jr., seu conterrâneo. Depois de formada, foi professora do primário e bibliotecária em escolas da rede estadual de ensino. Publicou ainda Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo 1969-1988 (1988) e Teia (1996). Com Alba , recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983; e com Teia , recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996. Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo. (In: http://www.revista.agulha.nom.br/of.html#bio)"



Alguns poemas de Orides:
 
AXIOMA

Sempre é melhor
saber
que não saber.

Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer

Sempre é melhor
desfazer
que tecer

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vemos por espelho
e enigma

(mas haverá outra forma
de ver?)

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DESAFIO

Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência.

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AURORA III

Instaura-se a forma
num só ato

a luz da forma é um único
ápice
o fruto é uma única forma
instaurada plenamente

(o amor é unicamente
quando in-forma)

... mas custa o Sol a atravessar o deserto
mas custa a amadurecer a luz
mas custa o sangue a pressentir o horizonte