domingo, 25 de março de 2012

Memórias de menina cantadas no Boitempo

ORDEM
Quando a folhinha de Mariana
exata informativa santificada
regulava o tempo, as colheitas,
o casamentos e até a hora de morrer,
o mundo era mais inteligível,
pairava certa graça no viver.

Hoje quem é que pode?

sábado, 24 de março de 2012

Sylvia Plath - Lady Lazarus


Tentei outra vez.
A cada dez anos
Eu tramo tudo

Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha como um abajur nazista,
Meu pé direito

Um peso de papel
Face sem feições, fino
Linho judeu.

Livre-me dos panos
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo?

O nariz, as covas dos olhos, os dentes postiços?
O hálito azedo
Some num só dia.

Logo logo a carne,
Que a caverna carcomeu, vai voltar
Pra casa, em mim.

Sou uma mulher que sorri.
Não passei dos trinta.
E como um gato tenho nove vidas.

Esta é a Terceira.
Que besteira
Se aniquilar a cada década.

Milhões de filamentos!
A platéia comendo amendoins
Se aglomera para ver

Desenfaixaram minhas mãos e meus pés
O grande strip-tease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos,
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

Mas sou a mesma, idêntica mulher.
Na primeira vez tinha dez anos.
Foi acidente.

Na segunda tentei
Acabar com tudo e nunca mais voltar.
E rolei, fechada

Como uma concha do mar.
Tiveram de chamar e chamar
E arrancar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.

Faço isso parecer infernal.
Faço isso parecer real.
Digamos que eu tenha vocação.

É fácil demais fazer isso na prisão.
É fácil demais fazer isso e ficar num canto.
É teatral

Voltar em pleno dia
Ao mesmo local, à mesma cara, ao mesmo grito
Brutal e aflito:

"Milagre!".
Que me deixa mal
Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração
Ele bate forte.

E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou um trapo ou uma mecha de cabelo.

E então, Herr Doktor.
E então, Herr Inimigo.

Sou sua opus
Seu tesouro,
Seu bebê de ouro puro

Que se derrete num grito.
Ardo e me viro.
Não pense que subestimei sua imensa consideração.

Cinzas, cinzas
Você remexe e atiça.
Carne, ossos, não há nada ali

Barra de sabão,
Anel de noivado,
Prótese de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer,
Cuidado
Cuidado.

Renascida das cinzas
Subo com meus cabelos ruivos
E como homens como ar.


(23-29 de outubro de 1962)