Deixo aqui três
textos de Clarice q me assaltaram na insônia desta última madrugada. Fazem
parte do livro A Descoberta do Mundo.
A Festa do Termômetro Quebrado
Sempre foi e será uma festa para mim quando se
quebra em casa um termômetro e liberta-se a gota gorda e contida de mercúrio
prateado, ali no chão, dando uma pequena corrida e depois imobilizando-se,
imune. Tento pega-lo com cuidado, auxiliada pela agudez de uma folha de papel
que passa deslizadoramente por baixo dela. Ou dele, o mercúrio. Que não se pode
pegar: no momento em que eu penso que o peguei ele se estilhaça mudo nos meus
dedos como mudos fogos de artifício, como o que dizem que nos acontece depois
da morte ─ o espírito vivo se espalha em energia solta, pelo ar, pelo cosmo. Que
impossibilidade de capturar a gota sensível. Ela simplesmente não deixa e
guarda a sua integridade, mesmo quando repartida em inúmeras bolinhas esparsas:
mas cada bolinha e um ser a parte, integro, separado. Basta porem que eu
alcance ligeiramente uma delas e ela e atraída velozmente pela que esta próxima
e forma um conjunto mais cheio, mais redondo. Sonho tanto hoje que quebrei um
termômetro como em criança, sonho em milhares de termômetros quebrados e muito
mercúrio denso e lunar e frio se espalhando. E eu a brincar, toda seria e
concentrada em alto grau, a brincar com a matéria viva de uma enorme quantidade
do metal de prata. Imagino-me a mergulhar como num banho nesse vasto mercúrio
que imagino saído dos termômetros: ao mergulhar milhares de bolas se soltariam,
cada uma por si mesma, grossas, impassíveis. O mercúrio é uma substância
isenta. Isenta de que? Nada explico, recuso-me a explicar, recuso-me a ser
discursiva: e isento e basta. Parece possuir um frio cérebro que comanda as
suas reações. Sinto-me em relação a ele como se eu o amasse e ele nada sentisse
por mim, nem sequer uma obediência de objeto. O mercúrio e um objeto que tem
vida própria. Lidar com ele e uma experiência não substituível por outra
qualquer. Ele não se cede a ninguém. E ninguém consegue por-lhe a mão. O
espírito, através do corpo como meio, não se deixa contaminar pela vida, e esse
pequeno e faiscante núcleo e o ultimo reduto do ser humano. As feras também
possuem esse núcleo irradiante, tanto que elas se conservam íntegras,
indomesticáveis e vitais.
Noto que
passei do mercúrio ao mistério das feras. E que o mercúrio ─ que constitui
matéria lunar ─ faz meditar, leva-me, de uma verdade a outra, ate o núcleo de
pureza e integridade que esta em cada um de nos. Quem? Quem não brincou com o
termômetro quebrado? CL
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