sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Motivo - Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Cérbero

O Cérbero

Conta a mitologia grega que à porta do Inferno havia um gigantesco cão de guarda, o famoso Cérbero, cão de três cabeças prontas a dilacerar qualquer incauto. “Mas pra quê?” pensava eu. “Quem diabo vai querer entrar no Inferno?” Na verdade, Cérbero estava ali para evitar que os condenados ao fogo eterno fugissem. Era um cão-de-guarda ao contrário dos que temos aqui – não guardava a entrada, guardava a saída. Mesmo assim, também cumpria a função oposta, porque somente as almas dos condenados poderiam entrar no reino de Hades. Pessoas vivas não – daí o grave incidente diplomático ocorrido quando Orfeu apareceu por lá querendo trazer de volta sua amada Eurídice. E quando Hércules chegou para levar o próprio Cérbero consigo, cumprindo o último dos seus Doze Trabalhos.
Acho que a lenda grega morre aí, mas pretendo enriquecê-la noutra direção. Por que motivo o cão se chama Cérbero? Respondo: porque ele representa o nosso Cérebro, a nossa mente pensante, a nossa consciência. Exatamente por isto ele é figurado com três cabeças (em diferentes versões da lenda, números muito maiores, que chegam até a cem). É o excesso de proteção, de controle, de censura. A função ditatorial do nosso Super-Ego ou que nome lhe queiram dar – a função controladora que nos impede de fazer bobagens mais sérias e de praticar crimes, mas ao mesmo tempo nos proíbe um comportamento mais relaxado, mais intuitivo, mais espontâneo. Toda vez que você vir aquele sujeito todo certinho, todo tenso, todo bem comportado e impecavelmente limpo, todo politicamente correto, aquele cara que na hora de pagar a conta vai até a última casa decimal e paga trinta e dois reais e sessenta e sete centavos – não duvide, amigo: é um prisioneiro de Cérbero, um prisioneiro de sua própria mente controladora.
E por qual estatuto mitológico ele é colocado justamente como guardião da saída do Inferno? A explicação mais lógica que me ocorre é que o Inferno protegido por esse cérebro não é um Inferno externo a nós, e sim interno a nós, um inferno aqui dentro. Como dizia o poeta Gilberto Gil: “Teu inferno é aqui”. O Inferno é o Inconsciente, é o lugar para onde arremessamos tudo que não presta, tudo que nos inquieta e perturba, tudo que é uma ameaça à ordem, à limpeza e à disciplina. O cérebro está ali justamente para evitar que esses pensamentos mal comportados se evadam do porão e venham perturbar o chá-das-cinco que nossa “persona” pública toma na sala de visitas, recebendo as autoridades.
Todas as vezes que tentamos acessar nosso Inconsciente (rastreando um ato falho, dissecando uma neurose, confrontando um trauma daqueles bem brabos, ou meramente analisando um sonho), o Cérebro de não-sei-quantas-cabeças aparece rosnando seu recado pitbull: “Pra trás!” rosna ele. “Aqui, não! Aqui só tem o que não presta!” E recuamos, temerosos. Talvez menos com medo das 100 cabeças do Cão do que com medo do nosso verdadeiro Rosto, que estamos a ponto de enxergar.

Bráulio Tavares, postado em seu Mundo Fantasmo

gullar no rascunho II

Uma pedra é uma pedra

uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)
uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa
ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa
enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele
de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga
e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta
e se inventa
Ferreira Gullar
Jornl Rascunho fev 2010

gullar no rascunho

O jasmim
me invade as ventas
no limite do veneno
assim de muito perto
esse aroma rude é um oculto fogo verde
(quase fedor)
que me lesiona
as narinas
entre o orgasmo e a morte
mal pergunto
que é isto um cheiro?
quem o faz?
a flor e eu?
um invento
milenar da flora?
quando? desde quando?
já estaria na massa das estrelas o cheiro da alfazema?
Nasce o perfume com as florestas
um silêncio a inventar-se nas plantas
vindo da terra escura
como caules, talos ramos folhas
o aroma
que se torna o arbusto jasmineiro.
Nos jardins dos prédios (na rua senador Eusébio,
por exemplo), nos matagais,
são usinas de aromas
a fabricar jasmim anis alfazema
(alguns cheiros são perversos
como o anis
que a muitos poetas endoidou
durante a belle époque;
já o da alfazema
dorme manso nas gavetas de roupas
em São Luíse reacende o perdido)
Tudo isto para dizer que ontem à noite
arranquei flores de um jasmineiro
no Flamengo
e vim com elas
- um lampejo entre as mãos -
pela rua
sorvendo-lhe o aroma selvagem
enquanto foguetes Tomahawk caíam sobre Bagdá.
Ferreira Gullar
Jornal Rascunho fev 2010