A PAIXÃO DE CLARICE LISPECTOR
Benedito Nunes
In: NOVAES, A.(org). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
Benedito Nunes começa sua contribuição ao seminário da Funarte retomando Barthes e sua proposta da paixão como força de leitura. A essa proposta é possível, segundo ele, acrescentar uma outra, na qual a paixão se coloca como força da escrita. E para isso o melhor exemplo é a obra A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector. O texto de Clarice apresenta um mergulho em “veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana.” Esse aspecto da obra é explorado pelo crítico que, antes, faz duas digressões: uma relativa aos aspectos históricos e culturais da paixão, outra relativa à obra de Clarice.
É possível perceber, de acordo com Nunes, uma perda da riqueza dos significados relacionados ao termo grego ‘pathos’. Em princípio, o termo referia-se a uma experiência infligida ao sujeito a qual se opunha o ‘logos’, território do pensamento lúcido. Para o grego arcaico, a paixão é algo misterioso e assustador, uma força que o domina em lugar de ser dominada. Entretanto, o período clássico grego, através de Sócrates e Platão, reformulará esse conceito, passando a conceber a paixão também como um motor benéfico para a ação no mundo. “Um dos diálogos platônicos, o Fedro, exalta os efeitos benéficos de quatro espécies de loucura (mania) consideradas dons divinos: a dos profetas e adivinhos, o entusiasmo inspirado pelas musas aos poetas, a possessão ritual dionisíaca e o transporte amoroso, obra de Eros, do qual se ocupou especialmente O banquete. ” Essa revisão é ignorada pelos estóicos que, em função da ênfase grandiosa dada à disciplina e à virtude, negam a paixão por ser ela forte empecilho à conquista do ‘apaté’, o estado apático do espírito.
Fugindo a esse asceticismo, Platão mostra em A República que a força da paixão pode ser canalizada para a atividade intelectual. Para o filósofo grego, o pensamento racional está comprometido com o patético posto que o filosofar tem por origem um estado de espírito marcado pelo estranhamento admirativo do mundo e das coisas (o ‘thaumazein’). Assim, a filosofia será tanto uma paixão do pensamento (o prazer pelo exercício do logos) quanto um pensamento da paixão, quando de sua tentativa de compreender o irracional.
Para Aristóteles, isso tudo não se separa de uma teoria da alma cujo leitmotiv de que as tendências, apetites e desejos movem a inteligência e a vontade foi herdado pelos escolásticos medievais. Assim, os desejos, conflitantes entre si, podem resistir às admoestações da parte racional ou escutá-las docilmente. Soma-se a isso, o valor catártico que Aristóteles atribuiu à comoção trágica, presente na representação das tragédias gregas, por equilibrar ‘eleos’ (a comiseração) e ‘phobus’ (o terror).
Segundo Benedito Nunes, Tomás de Aquino, no período medieval, defende em sua Suma Teológica que nem todas as paixões são moralmente más. Numa perspectiva salvacionista, existem aquelas que favorecem o caminho do Bem e aquelas que estimulam a transgressão das leis divinas, impedindo o Caminho da Salvação. É justamente dentro desta perspectiva que o amor carnal foi legitimado enquanto restrito ao casamento e à procriação e o amor erótico foi condenado. “ ‘Ágape’ e ‘charitas’, amor a Deus e amor ao próximo, refratários ao espraiamento de Eros, à ilimitação do desejo impulsivo e à sua promessa de imortalidade para os pagãos, compatibilizam-se apenas com o amor de união do êxtase místico. As espécies platônicas da mania, da loucura divina, tornavam-se efeitos de possessão diabólica, atos orgiásticos, práticas de feitiçaria, condenáveis e reprimidos.”
A reabilitação das paixões só ocorreria, no Ocidente, dentro do século XVIII, quando, a partir de uma perspectiva utilitarista, as paixões puderam ser vistas como instrumentos com fins de utilidade social. Era, na verdade, a ética permissiva do capitalismo que aflorava, mostrando que tudo é útil se vantajoso materialmente. O romantismo, em oposição a esse ponto de vista, desperta do subsolo do inconsciente humano tudo que é noturno, instintivo, libera o entusiasmo poético e o arrebatamento amoroso. “Emergiu com ele [romantismo] o novo ‘pathos’ de uma sensibilidade conflitiva; por trás das paixões da alma como que se desvendaria a alma das paixões: a Sehnsucht dos românticos alemães, a aspiração do infinito, sentimento do sentimento e desejo do desejo – tônica passional da inquietude romântica, sofrida e insaciável, que Kierkegaard qualificou de perpetuo esforço para apreender aquilo que se desvanece”. ”
Nesse aspecto, o romantismo enquanto sinônimo da ilusão do desejo espontâneo e da subjetividade quase divina é superado na criação romanesca. Na ficção romântica, o desejo e a paixão, principalmente a paixão amorosa, a dependência intersubjetiva e social do desejo, a transferência de interesses sociais, expõem um jogo de forças que deixa vulnerável a autonomia do sujeito centrado no Eu. “A crítica da ilusão romântica – ilusão que não compromete a essência do romantismo – alerta-nos contra a postura ingênua que reclama da literatura o puro espelhamento das paixões. Qualquer que seja o grau de expressão literária por elas alcançado – o grito, o gesto arrebatado, o surto emocional – a paixão expressa já é a paixão passada, arrefecida, recordada, medida, distanciada.”
Na sua segunda digressão, Benedito Nunes discute de modo geral a obra de Clarice Lispector. A grande característica da obra de Clarice, para Nunes, é o fato de que, à semelhança de autores como Proust, Joyce e Virgínia Woolf, a ação narrativa é interna, focada na expressão subjetiva dos personagens. Essa expressão, presa a um fio narrativo tênue, chega a desaparecer nos últimos livros (Água Viva, Um sopro de vida).
Na obra de Clarice, a cólera, a ira, a raiva, o ódio, nojo, náusea, amor e alegria são sentimentos recorrentes que configuram um aspecto de seu ‘pathos’ literário, que motivam a narração ou que são momentos culminantes desta. Outra característica desse ‘pathos’ é a ‘hybris’ do desejo, a violência, a insaciabilidade, o descomedimento transgressora de ordens estabelecidas. “Esse desejo transgressor, que reflui interiormente como angústia da liberdade, mal se separa de uma inquietude espiritual, moral e intelectual, afã de expressão e realização individuais... Por outro lado, essa inquietude acompanha a introspecção em que vivem mergulhadas as personagens femininas, subjugando-as a uma constante acuidade reflexiva sobre os seus próprios desejos e intenções, o que as torna constantes espectadoras de si mesmas.” É possível ver que as personagens de Clarice constituem personagens fraturadas, divididas, surpreendidas por existirem na ausência de qualquer certeza de identidade.
A paixão segundo G.H. é uma história do feitiço da náusea sobre o corpo, alienando a alma deste num momento de contemplação extática em que o não-humano silencioso e cru leva a narrativa à beira do inenarrável. Para quem não conhece o enredo, trata-se de um incidente doméstico trivial em que a narradora/personagem, moradora de uma cobertura, num dia qualquer de sua vida plácida entra no quarto desocupado da empregada e esmaga uma barata que, segundo ela, lhe observava, da porta do guarda-roupa vazio. Num momento de estranheza, fascinada pelo corpo morto que, concomitantemente, a repugna e a atrai, num sacrifício de sua identidade humana, egóica, num ritual de provação místico arcaico, a narradora/personagem leva aquele corpo morto à sua boca, comunga o não-humana, participa do numinoso.
Benedito Nunes mostra que o relato do transe pela narradora/personagem mesclado à compreensão de si mesma, construída durante a interpretação de sua experiência, é uma transposição da via mística. Misticismo em seu stricto sensu, como “...o caminho individual de acesso, por meio de uma experiência prática de desprendimento da individualidade, ao todo, ao cerne do real ou à divindade. Acesso que é tanto conhecimento extraintelectual, contemplativo, quanto união e liberação”. E mais à frente, Nunes completa: “Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma primitiva, interdita, do sagrado. “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo””.
O enredo, então, constitui a trajetória de descida a um subsolo ancestral, sem que, no entanto, a obra possa ser incluída dentro do grupo de obras místicas de finalidades anagógicas com as quais, por outro lado, não deixar de ter parentesco. Noutro aspecto, a experiência mística vivida pela narradora/personagem configura-se uma experiência pagã, primitiva, orgiástica (“Eu entrara na orgia do Sabah. Agora sei o que se faz no escuro das montanhas em noite de orgia. Eu sei com horror; gozam-se as coisas. Flui-se a coisa de que são feitas as coisas.”). o Eros reprimido então ressurge.
É um ritual, um ritual de provação. No ritual pagão dionisíaco, a individualidade é sacrificada. Mas na obra, a vida prova a narradora/personagem e aquela também é provada por esta. “Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa também que eu estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.” Esta vida sendo provada pela narradora/personagem é tratada como 'o Deus' – não Deus – mas o Deus imanente à vida, mais tarde tratado em outras obras da escritora pelo termo 'it'. Nessa vivência mística, Eros em lugar de subir às alturas, atraído pela beleza, como pensado por Platão, dessublima-se no aquém da consciência.
Conforme afirmado no início, Nunes mostra que, em A paixão segundo G. H., a história narrada e a própria estruturação do romance estão fortemente imbricadas. “A desindividualização da própria narradora, chega ao limite da criação romanesca; a sua falta de identidade põe em suspenso a identidade mesma da narrativa”. Isso se dá porque eros põe em movimento uma escrita apaixonada, uma escrita corporal direcionada ao corpo do interlocutor. A leitura a ser feita não cabe no racional, precisa descer ao corpo pra ser compreendida, para que a experiência seja revivida. Uma leitura feita com o corpo, não apenas com a mente. “E aí encontramos uma outra espécie de paixão que se converte na primeira – o pathos mesmo da escrita, surgindo, velado, do inconsciente, e que tende a exprimir o inexprimível. Pois que a trajetória mística de G. H. passa pela via crucis da linguagem, pelo gozoso padecimento de ter que buscar a forma para expressar o neutro, o cru, o não humano, a existência, o ser.”
Clarice mesmo o mostra: “A linguagem é o meu esforço humano. Por destino, tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto – o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu.” Assim se configura em Clarice a paixão da escrita, uma sujeição ao sagrado, ao amor que atravessa a vida.
Benedito Nunes
In: NOVAES, A.(org). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
Benedito Nunes começa sua contribuição ao seminário da Funarte retomando Barthes e sua proposta da paixão como força de leitura. A essa proposta é possível, segundo ele, acrescentar uma outra, na qual a paixão se coloca como força da escrita. E para isso o melhor exemplo é a obra A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector. O texto de Clarice apresenta um mergulho em “veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana.” Esse aspecto da obra é explorado pelo crítico que, antes, faz duas digressões: uma relativa aos aspectos históricos e culturais da paixão, outra relativa à obra de Clarice.
É possível perceber, de acordo com Nunes, uma perda da riqueza dos significados relacionados ao termo grego ‘pathos’. Em princípio, o termo referia-se a uma experiência infligida ao sujeito a qual se opunha o ‘logos’, território do pensamento lúcido. Para o grego arcaico, a paixão é algo misterioso e assustador, uma força que o domina em lugar de ser dominada. Entretanto, o período clássico grego, através de Sócrates e Platão, reformulará esse conceito, passando a conceber a paixão também como um motor benéfico para a ação no mundo. “Um dos diálogos platônicos, o Fedro, exalta os efeitos benéficos de quatro espécies de loucura (mania) consideradas dons divinos: a dos profetas e adivinhos, o entusiasmo inspirado pelas musas aos poetas, a possessão ritual dionisíaca e o transporte amoroso, obra de Eros, do qual se ocupou especialmente O banquete. ” Essa revisão é ignorada pelos estóicos que, em função da ênfase grandiosa dada à disciplina e à virtude, negam a paixão por ser ela forte empecilho à conquista do ‘apaté’, o estado apático do espírito.
Fugindo a esse asceticismo, Platão mostra em A República que a força da paixão pode ser canalizada para a atividade intelectual. Para o filósofo grego, o pensamento racional está comprometido com o patético posto que o filosofar tem por origem um estado de espírito marcado pelo estranhamento admirativo do mundo e das coisas (o ‘thaumazein’). Assim, a filosofia será tanto uma paixão do pensamento (o prazer pelo exercício do logos) quanto um pensamento da paixão, quando de sua tentativa de compreender o irracional.
Para Aristóteles, isso tudo não se separa de uma teoria da alma cujo leitmotiv de que as tendências, apetites e desejos movem a inteligência e a vontade foi herdado pelos escolásticos medievais. Assim, os desejos, conflitantes entre si, podem resistir às admoestações da parte racional ou escutá-las docilmente. Soma-se a isso, o valor catártico que Aristóteles atribuiu à comoção trágica, presente na representação das tragédias gregas, por equilibrar ‘eleos’ (a comiseração) e ‘phobus’ (o terror).
Segundo Benedito Nunes, Tomás de Aquino, no período medieval, defende em sua Suma Teológica que nem todas as paixões são moralmente más. Numa perspectiva salvacionista, existem aquelas que favorecem o caminho do Bem e aquelas que estimulam a transgressão das leis divinas, impedindo o Caminho da Salvação. É justamente dentro desta perspectiva que o amor carnal foi legitimado enquanto restrito ao casamento e à procriação e o amor erótico foi condenado. “ ‘Ágape’ e ‘charitas’, amor a Deus e amor ao próximo, refratários ao espraiamento de Eros, à ilimitação do desejo impulsivo e à sua promessa de imortalidade para os pagãos, compatibilizam-se apenas com o amor de união do êxtase místico. As espécies platônicas da mania, da loucura divina, tornavam-se efeitos de possessão diabólica, atos orgiásticos, práticas de feitiçaria, condenáveis e reprimidos.”
A reabilitação das paixões só ocorreria, no Ocidente, dentro do século XVIII, quando, a partir de uma perspectiva utilitarista, as paixões puderam ser vistas como instrumentos com fins de utilidade social. Era, na verdade, a ética permissiva do capitalismo que aflorava, mostrando que tudo é útil se vantajoso materialmente. O romantismo, em oposição a esse ponto de vista, desperta do subsolo do inconsciente humano tudo que é noturno, instintivo, libera o entusiasmo poético e o arrebatamento amoroso. “Emergiu com ele [romantismo] o novo ‘pathos’ de uma sensibilidade conflitiva; por trás das paixões da alma como que se desvendaria a alma das paixões: a Sehnsucht dos românticos alemães, a aspiração do infinito, sentimento do sentimento e desejo do desejo – tônica passional da inquietude romântica, sofrida e insaciável, que Kierkegaard qualificou de perpetuo esforço para apreender aquilo que se desvanece”. ”
Nesse aspecto, o romantismo enquanto sinônimo da ilusão do desejo espontâneo e da subjetividade quase divina é superado na criação romanesca. Na ficção romântica, o desejo e a paixão, principalmente a paixão amorosa, a dependência intersubjetiva e social do desejo, a transferência de interesses sociais, expõem um jogo de forças que deixa vulnerável a autonomia do sujeito centrado no Eu. “A crítica da ilusão romântica – ilusão que não compromete a essência do romantismo – alerta-nos contra a postura ingênua que reclama da literatura o puro espelhamento das paixões. Qualquer que seja o grau de expressão literária por elas alcançado – o grito, o gesto arrebatado, o surto emocional – a paixão expressa já é a paixão passada, arrefecida, recordada, medida, distanciada.”
Na sua segunda digressão, Benedito Nunes discute de modo geral a obra de Clarice Lispector. A grande característica da obra de Clarice, para Nunes, é o fato de que, à semelhança de autores como Proust, Joyce e Virgínia Woolf, a ação narrativa é interna, focada na expressão subjetiva dos personagens. Essa expressão, presa a um fio narrativo tênue, chega a desaparecer nos últimos livros (Água Viva, Um sopro de vida).
Na obra de Clarice, a cólera, a ira, a raiva, o ódio, nojo, náusea, amor e alegria são sentimentos recorrentes que configuram um aspecto de seu ‘pathos’ literário, que motivam a narração ou que são momentos culminantes desta. Outra característica desse ‘pathos’ é a ‘hybris’ do desejo, a violência, a insaciabilidade, o descomedimento transgressora de ordens estabelecidas. “Esse desejo transgressor, que reflui interiormente como angústia da liberdade, mal se separa de uma inquietude espiritual, moral e intelectual, afã de expressão e realização individuais... Por outro lado, essa inquietude acompanha a introspecção em que vivem mergulhadas as personagens femininas, subjugando-as a uma constante acuidade reflexiva sobre os seus próprios desejos e intenções, o que as torna constantes espectadoras de si mesmas.” É possível ver que as personagens de Clarice constituem personagens fraturadas, divididas, surpreendidas por existirem na ausência de qualquer certeza de identidade.
A paixão segundo G.H. é uma história do feitiço da náusea sobre o corpo, alienando a alma deste num momento de contemplação extática em que o não-humano silencioso e cru leva a narrativa à beira do inenarrável. Para quem não conhece o enredo, trata-se de um incidente doméstico trivial em que a narradora/personagem, moradora de uma cobertura, num dia qualquer de sua vida plácida entra no quarto desocupado da empregada e esmaga uma barata que, segundo ela, lhe observava, da porta do guarda-roupa vazio. Num momento de estranheza, fascinada pelo corpo morto que, concomitantemente, a repugna e a atrai, num sacrifício de sua identidade humana, egóica, num ritual de provação místico arcaico, a narradora/personagem leva aquele corpo morto à sua boca, comunga o não-humana, participa do numinoso.
Benedito Nunes mostra que o relato do transe pela narradora/personagem mesclado à compreensão de si mesma, construída durante a interpretação de sua experiência, é uma transposição da via mística. Misticismo em seu stricto sensu, como “...o caminho individual de acesso, por meio de uma experiência prática de desprendimento da individualidade, ao todo, ao cerne do real ou à divindade. Acesso que é tanto conhecimento extraintelectual, contemplativo, quanto união e liberação”. E mais à frente, Nunes completa: “Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma primitiva, interdita, do sagrado. “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo””.
O enredo, então, constitui a trajetória de descida a um subsolo ancestral, sem que, no entanto, a obra possa ser incluída dentro do grupo de obras místicas de finalidades anagógicas com as quais, por outro lado, não deixar de ter parentesco. Noutro aspecto, a experiência mística vivida pela narradora/personagem configura-se uma experiência pagã, primitiva, orgiástica (“Eu entrara na orgia do Sabah. Agora sei o que se faz no escuro das montanhas em noite de orgia. Eu sei com horror; gozam-se as coisas. Flui-se a coisa de que são feitas as coisas.”). o Eros reprimido então ressurge.
É um ritual, um ritual de provação. No ritual pagão dionisíaco, a individualidade é sacrificada. Mas na obra, a vida prova a narradora/personagem e aquela também é provada por esta. “Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa também que eu estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.” Esta vida sendo provada pela narradora/personagem é tratada como 'o Deus' – não Deus – mas o Deus imanente à vida, mais tarde tratado em outras obras da escritora pelo termo 'it'. Nessa vivência mística, Eros em lugar de subir às alturas, atraído pela beleza, como pensado por Platão, dessublima-se no aquém da consciência.
Conforme afirmado no início, Nunes mostra que, em A paixão segundo G. H., a história narrada e a própria estruturação do romance estão fortemente imbricadas. “A desindividualização da própria narradora, chega ao limite da criação romanesca; a sua falta de identidade põe em suspenso a identidade mesma da narrativa”. Isso se dá porque eros põe em movimento uma escrita apaixonada, uma escrita corporal direcionada ao corpo do interlocutor. A leitura a ser feita não cabe no racional, precisa descer ao corpo pra ser compreendida, para que a experiência seja revivida. Uma leitura feita com o corpo, não apenas com a mente. “E aí encontramos uma outra espécie de paixão que se converte na primeira – o pathos mesmo da escrita, surgindo, velado, do inconsciente, e que tende a exprimir o inexprimível. Pois que a trajetória mística de G. H. passa pela via crucis da linguagem, pelo gozoso padecimento de ter que buscar a forma para expressar o neutro, o cru, o não humano, a existência, o ser.”
Clarice mesmo o mostra: “A linguagem é o meu esforço humano. Por destino, tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto – o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu.” Assim se configura em Clarice a paixão da escrita, uma sujeição ao sagrado, ao amor que atravessa a vida.