QUEM CONHECEU A CASA DE TOM JOBIM no alto do Jardim Botânico, no Rio, não conseguia deixar de se surpreender. Na estante de sua sala, poucos livros sobre música. Mas, ocupando as prateleiras, tomando a tampa do piano e empilhando-se sobre poltronas, alguns livros de poesia -e muitos dicionários. Dezenas deles, em várias línguas e de todos os gêneros: analógico, de sinônimos, tupi-guarani, de gíria brasileira e americana, de folclore, de pássaros.
Fazia sentido. As notas musicais, que Tom usava para trabalhar, já estavam todas na cabeça. Mas as palavras, sua grande paixão, não podiam ficar soltas pela casa. Seu lugar era dentro dos livros, em forma de poema, ou dos dicionários, como exércitos de reserva, de plantão para o combate, para a esgrima das ideias. Elas dominavam também boa parte das conversas de Tom em mesa de bar. E não importava muito o interlocutor. Na verdade, era como se ele dialogasse com elas, mais do que com a pessoa à sua frente. Uma de suas fixações eram as palavras que começavam com "al", denotando a presença árabe na península Ibérica e, daí, entre nós. "Alarido, alaúde, alazão, albornoz, Albuquerque, alcachofra, alcaçuz, alcaide, alcaparra, alcateia, alcatifa...", ele as ia desfiando, até que algum engraçadinho -o que era invariável- o interrompesse, citando o gângster Al Capone. Acho que ele desfiava o rosário de "als" para provocar a menção a Al Capone -e, se era assim, não fui o único a morder a isca.
Tom não cairia na armadilha de confundi-las com outras palavras em "al", mas não de origem árabe, como "albatroz", do francês "albatros", por intermédio do inglês "albatross", o qual, incrível, vem do português "alcatraz", uma espécie de pelicano -e esta, sim, talvez proveniente do árabe "al-gattás". Ou as latinas "alegria", "alegoria" e "aleluia", a francesa "alergia", as hispânicas "almofada" e "alpiste", a inglesa "alumínio". Tom não cometeria esse erro porque gostava de estudar, fazia a lição de casa e, claro, devia ter mais de um dicionário etimológico -entre os quais o ótimo "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa", do filólogo carioca Antônio Geraldo da Cunha, publicado originalmente em 1982 e que está saindo em nova e enriquecida edição [Lexikon/Faperj, 744 págs., R$ 74,90].
A etimologia -"ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras e sua evolução histórica", segundo o próprio dicionário- é uma espécie de genealogia da língua. E um dicionário do gênero é o seu, digamos, DNA. Para quem gosta das palavras, a leitura de um dicionário etimológico pode ser tão emocionante quanto a de um romance de capa e espada. Aliás, os quiproquós não são muito diferentes: a língua também comporta a luta de classes, a sobrevivência das espécies, manobras econômicas, trocas comerciais, invasões estrangeiras, correrias, perseguições, fugas -a diferença é que, em vez de damas de peruca empoada e heróis mascarados, os protagonistas são as palavras. Há palavras que entram na língua disfarçadas e pela janela; outras que desaparecem e são esquecidas, e, um dia, são encontradas mortas num sebo de livros; e ainda outras que surgem de repente, brilham por um momento nos salões, e também acabam abandonadas. Um dicionário etimológico conta, em pílulas, tudo o que aconteceu na língua.
Ele nos ensina também sobre a nossa própria índole. Quem diria, por exemplo, que palavras como "botequim", "malandro" e "baderna" -três vocábulos que, às vezes, andam juntos até altas horas- não vieram do carioquês castiço ou de uma remota raiz africana, mas do... italiano? Sendo que "baderna" (desordem, confusão) nasceu de uma dançarina italiana, Maria Baderna, que atuou no Rio em 1851 e deixou os estudantes brasileiros em polvorosa.
E quem diria também que "bossa" (inchação, protuberância, mas também aptidão, queda, vocação) vem do francês "bosse" e se usa em português desde o século 18? Ou que Garrincha, o jogador, cujo nome derivou de um passarinho chamado garricha, pode ter a ver com "garrir", do latim "garrire", significando ressoar, tagarelar, chilrear? E não é interessante que "moleque" (indivíduo sem palavra ou sem seriedade, canalha, velhaco, patife) esteja regredindo em São Paulo a seu sentido original em quimbundo, "mu'leke", menino, rapazote?
Antônio Geraldo da Cunha (1924-99) não viveu para ver verbos como "deletar", "googlar" e "twittar" se intrometerem na língua do Brasil -com uma facilidade que não encontram em outras terras. E seus continuadores preferiram deixar esses estrupícios, por enquanto, de fora do dicionário. Mas tais verbos têm uma boa chance de, um dia, encontrar abrigo no "Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa", do estudioso cearense João Gomes da Silveira, que acaba de sair pela WMF Martins Fontes [980 págs., R$ 98].
Neste, que se subintitula "Riqueza idiomática das frases verbais; uma hiperoficina de gírias e outros modismos luso-brasileiros", o critério é mais liberal -basta que o povo adote uma expressão para que ela comece a fazer parte da língua. De "abafar a banca" (ganhar no jogo todo o dinheiro do banqueiro), gíria do Rio, à coimbrã "zupar na bisca" (sair habilmente de qualquer embaraço), passam-se mais de 900 páginas de chulices menos ou mais conhecidas, mas quase todas deliciosas.
Este é um livro que, apesar do peso, pode ser levado para e lido em qualquer lugar, sozinho ou em grupo, com a garantia de gerar prazer. O prazer, por exemplo, de descobrir as meiguices da língua: "acatitar os olhos" (arregalar os olhos), "andar à esparavela" (andar nu), "armar-se em parvo" (fazer-se de bobo), "bater com as dez" (morrer), "estar-se nas tintas" (não ligar, não dar bola), "ladrar à lua" (falar sem ser ouvido); "lamber embira" (passar miséria), "passar à espada" (namorar muitas mulheres) -a maioria, de origem lusa, mas que podíamos aplicar aqui. Permite também fazer mau juízo de expressões inocentes: "alçar a caganeta" (ir-se embora), "botar o cu na goteira" (ficar prevenido), "comer escoteiro" (comer um único tipo de alimento, sem acompanhamento), "melar a vara" (estragar um negócio), "meter nos cornos" (decorar, fixar na memória), "tomar na cuia" (ser vencido, perder uma questão).
É verdade que, em muitos casos, a expressão, além de suspeita, é mesmo culpada. Pode-se, por exemplo, afogar o ganso, o grilo, o jegue e o Judas, tudo com o mesmo sentido. No sentido contrário, dependendo da região do Brasil ou de Portugal, pode-se dar a goiaba, a maricotinha, o boga, o chicote, o disco, o fiofó, o frosquete, o furico, o oitão, o oiti, o tareco e, mais universalmente, o rabo.
Aliás, quando se trata de inventar expressões para descrever o ato sexual, brasileiros e portugueses são tão criativos que nem parecem religiosos -a não ser que toda essa riqueza de chulices se refira exclusivamente ao sexo para fins de reprodução.
O dicionário de Gomes da Silveira [leia entrevista em folha.com/ilustrissima] pereniza expressões outrora comuns e hoje em risco de extinção, como "abrir o bué" (chorar), "deixar a pão e laranja" (deixar passar fome), "ir à garra" (perder o rumo, ficar à deriva) e tantas outras. De uma ou duas décadas para cá, a língua parece estar sendo reduzida a um vocabulário básico -a maioria das pessoas fala e escreve do mesmo jeito, niveladas, creio, pela mediocridade da televisão. Com isso, livros como este dicionário serão indispensáveis para o dia em que a língua for efetivamente restaurada, com todos os seus erros, grosserias e belezas. Tom Jobim iria adorar.
RUY CASTRO, F São Paulo, 28.11.2010