Polêmica ou ignorância?
Discussão sobre livro
didático só revela ignorância da grande imprensa
Marcos Bagno Universidade de Brasília
Para surpresa de ninguém, a coisa se repetiu. A grande
imprensa brasileira mais uma vez exibiu sua ampla e larga ignorância a respeito
do que se faz hoje no mundo acadêmico e no universo da educação no campo do
ensino de língua.
Jornalistas desinformados abrem um livro didático,
leem metade de meia página e saem falando coisas que depõem sempre muito mais
contra eles mesmos do que eles mesmos pensam (se é que pensam nisso,
prepotentemente convencidos que são, quase todos, de que detêm o absoluto poder
da informação).
Polêmica? Por que polêmica, meus senhores e minhas
senhoras? Já faz mais de quinze anos que os livros didáticos de língua
portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da
Educação abordam o tema da variação linguística e do seu tratamento em sala de
aula. Não é coisa de petista, fiquem tranquilas senhoras comentaristas
políticas da televisão brasileira e seus colegas explanadores do óbvio.
Já no governo FHC, sob a gestão do ministro Paulo
Renato, os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar
os fenômenos da variação linguística, o caráter inevitavelmente heterogêneo de
qualquer língua viva falada no mundo, a mudança irreprimível que transformou,
tem transformado, transforma e transformará qualquer idioma usado por uma
comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos
provenientes das chamadas “classes populares” poderão se reconhecer no material
didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E, é claro, com a
chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas
“classes populares”, esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de
falar, e o de seus aprendizes, não é feio, nem errado, nem tosco, é apenas uma
língua diferente daquela – devidamente fossilizada e conservada em formol – que
a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo, principalmente nos últimos
tempos, com a chegada aos novos meios de comunicação de pseudoespecialistas
que, amparados em tecnologias inovadoras, tentam vender um peixe gramatiqueiro
para lá de podre.
Enquanto não se reconhecer a especificidade do
português brasileiro dentro doconjunto de línguas derivadas do português
quinhentista transplantados para as colônias, enquanto não se reconhecer que o
português brasileiro é uma língua em si, com gramática própria, diferente da do
português europeu, teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas.
A principal característica dos discursos marcadamente
ideologizados (sejam eles da direita ou da esquerda) é a impossibilidade de ver
as coisas em perspectiva contínua, em redes complexas de elementos que se
cruzam e entrecruzam, em ciclos constantes. Nesses discursos só existe o preto
e o branco, o masculino e o feminino, o mocinho e o bandido, o certo e o errado
e por aí vai. Darwin nunca disse em nenhum lugar de seus escritos que “o homem
vem do macaco”. Ele disse, sim, que humanos e demais primatas deviam ter se
originado de um ancestral comum. Mas essa visão mais sofisticada não
interessava ao fundamentalismo religioso que precisava de um lema distorcido
como “o homem vem do macaco” para empreender sua campanha obscurantista, que
permanece em voga até hoje (inclusive no discurso da candidata azul disfarçada
de verde à presidência da República no ano passado).
Da mesma forma, nenhum linguista sério, brasileiro ou
estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades
linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer
ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua. O que esses
profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa
não significa automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade
linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los ao
mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar
aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a
todo momento.
Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso
é para mim tomar?”, porque essa regra gramatical (sim, caros leigos, é uma
regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos
compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”, porque
ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro,
mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo” e os que falam
“errado”, é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos, de modo que
eles – se julgarem pertinente, adequado e necessário – possam vir a usá-la
TAMBÉM. O problema da ideologia purista é esse também. Seus defensores não
conseguem admitir que tanto faz dizer assisti o filme quanto assisti ao filme,
que a palavra óculos pode ser usada tanto no singular (o óculos, como dizem
101% dos brasileiros) quanto no plural (os óculos, como dizem dois ou três
gatos pingados).
O mais divertido (para mim, pelo menos, talvez por um
pouco de masoquismo) é ver os mesmos defensores da suposta “língua certa”, no
exato momento em que a defendem, empregar regras linguísticas que a tradição
normativa que eles acham que defendem rejeitaria imediatamente. Pois ontem,
vendo o Jornal das Dez, da GloboNews, ouvi da boca do sr. Carlos Monforte essa
deliciosa pergunta: “Como é que fica então as concordâncias?”. Ora, sr.
Monforte, eu lhe devolvo a pergunta: “E as concordâncias, como é que ficam
então?
Fonte: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=745