domingo, 27 de fevereiro de 2011

Luto na literatura brasileira

             Morreu na madrugada deste sábado para domingo, a uma hora da manhã, na cidade de Porto Alegre, o escritor brasileiro Moacyr Scliar, vitimado por um acidente vascular cerebral.
             Nascido também Porto Alegre e formado em medicina, o escritor publicou mais de 70 livros entre diversos gêneros literários: romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio. Sua obra tem forte influência da literatura fantástica e da tradição judaica. Integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2003, Scliar já recebeu prêmios Jabuti, uma das mais prestigiadas premiações literárias do país, em 1988, 1993, 2000 e 2009. Entre suas obras mais importantes destacam-se os livros 'A Guerra no Bom Fim', 'O Centauro no Jardim', 'O Exército de um Homem Só' e 'Max e os Felinos'.



            Entrevista do autor ao programa "Sempre um papo": http://www.youtube.com/watch?v=cRRMwJXVLLA

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Cânticos de Cecília

 Vou começar aqui uma série de posts com poemas daquele q considero o melhor livro de Cecília Meireles, o livro "Cânticos":

Cântico I

Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,
Como Deus.

Crônica do José Castello

Raduan Nassar, meu raptor

    No post do último dia 11, falei do silêncio de João Gilberto Noll. Hoje venho falar de meu próprio silêncio. Durante 10 dias, como vocês notaram, simplesmente desapareci. Venho explicar o que me aconteceu. Não viajei, não adoeci, não entrei de férias. As idéias não me faltaram. Não desisti de nada. Fui, simplesmente, raptado por um escritor.
    Coisas assim, volta e meia, me acontecem: às vezes, entro demais em um livro, perco-me em seus corredores de palavras, as frases me arrastam como armadilhas, e então, detido em um labirinto, já não consigo sair. Dessa vez, Raduan Nassar foi o responsável: por 10 diz, perdi-me nas páginas de Lavoura arcaica, seu grande romance de 1975.
     Explico melhor. Na semana passada, no Rio de Janeiro, ao lado de minha amiga, a psicanalista Maria Hena Lemgruber, e a convite do SESC de Copacabana, participei de mais uma versão do "Extremos: círculo de leitura de ficções radicais". Este é o terceiro ano do "Extremos", projeto que criei em parceria com meu amigo, o músico e dramaturgo Flávio Stein, mas que, por um desses mistérios que caracterizam a vida cultural em Curitiba, não vingou na cidade.
     Já no Rio, o projeto deu logo certo. Associei-me a Hena e, desde então, já fizemos leituras abertas de ficções tão espantosas quanto Água viva, de Clarice Lispector, Memórias do subsolo, de Fiodor Dostoievski, e A metamorfose, de Franz Kafka. Creio, porém, que nenhuma delas me envolveu mais quanto a leitura em voz alta de Lavoura arcaica (Companhia das Letras). Creio que Hena divide comigo o mesmo sentimento.
     O projeto "Extremos" parte de princípios simples. Em voz alta, eu e Hena nos revezamos na leitura, página a página, parágrafo a parágrafo, frase a frase, de uma ficção. Os participantes estão não só autorizados, mas são estimulados a nos interromper sempre que desejarem, para expor comentários, fazer associações livres, trazer lembranças, expressar sentimentos, evocar outros livros. É uma leitura regida pela liberdade: o mais importante é o modo como aquele livro bate em que o lê. Nenhum dogma, nenhuma teoria, nem objetivo, nenhuma exigência curricular. Só a experiência devastadora de ler.
      Nos quatro dias em que lemos Lavoura arcaica não dormi muito bem. Dia e noite pensava no livro de Raduan. Eu já o lera meia-dúzia de vezes. Mas a experiência da leitura em voz alta é atordoante. O estilo em serpente, a carga explosiva de emoções, a radicalidade das falas, tudo me envolvia e me prendia. De volta para casa, e só a muito custo, consegui escrever minha coluna do Prosa & Verso, e também minha  crônica semanal do site Vida Breve. Não podia pensar em mais nada: o livro de Raduan Nassar me engoliu.
          Sem alternativas, poupei-me um pouco deixando de lado, por alguns dias, este blog. Não tomei essa decisão com alegria. Bem que tentei rascunhar um ou outro post: nenhum deles se concluía. Tentei, ainda escrever sobre Lavoura arcaica, mas estava de tal modo tomado pelo livro que as palavras me falhavam. Hoje, quatro dias depois da concluída da leitura, enfim, consigo rememorar o que vivi. Em um caderno vermelho, guardo muitas anotações, que pretendo, aos poucos, dividir com vocês.
      Nunca se é o mesmo homem depois da leitura de um grande livro. Alguma coisa sempre se modifica em nosso interior, e foi assim também dessa vez. Só hoje me sinto um pouco mais liberto, um pouco mais dono de mim. Meu doce raptor, Raduan Nassar, em cujas palavras eu me embrenhei sem que ele soubesse disso, em cuja voz eu me perdi sem que ele pudesse reagir, meu raptor deixou em mim marcas de que nunca me livrarei.
     Assim lemos um livro: sofrendo do livro. Só assim entramos em um grande romance: como quem é vítima de um sequestro. A leitura se torna uma forma sutil de captura. Não deixa de ser uma prisão. As palavras grudam e retêm. As frases se enroscam como algemas. As vozes tomam conta de nossa mente. Terminei de reler Lavoura arcaica e nunca mais me livrarei do que li.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011


tarega mitemo
ware wo natsukashiku naru gotoki
nagaki tegami wo kakitaki yuube

Um cair de noite
e a vontade de escrever uma carta tão longa
que te faça sentir saudades de mim

Takubku Ishikawa

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

"O Livro das Ignorãças"

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Livro que influenciou Borges e toda a vanguarda argentina chega ao Brasil

Capa de Macedonio Fernandez é certamente um dos casos mais curiosos da literatura mundial. Original ao extremo, sua obra é impossível de ser classificada e no entanto é concretamente um ponto de partida para tudo o que se escreveu de mais ousado e criativo na Argentina, a começar por Borges, que era seu maior admirador e amigo constante.

MUSEU DO ROMANCE DA ETERNA
Autor: Macedonio Fernández
Editora: Cosac Naify
Tradutor: Gênese Andrade
Páginas: 266
Preço: R$ 49,90


Para saber mais: http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/livros/resenhas/livro-que-influenciou-borges-e-toda-a-vanguarda-argentina-chega-ao-brasil.jhtm

Pescaria

Arte poética

Que el verso sea como una llave
que abra mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
cuanto miren los ojos creado sea,
y el alma del oyente quede temblando.

Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
el adjetivo, cuando no da vida, mata.

Estamos en el ciclo de los nervios.
El músculo cuelga,
como recuerdo en los museos;
mas no por eso tenemos menos fuerza:
 el vigor verdadero
reside en la cabeza.

Por qué cantáis la rosa, ¡oh, Poetas!
Hacedla florecer en el poema.

Sólo para nosotros
viven todas las cosas bajo el Sol.

El poeta es un pequeño Dios.


HUIDOBRO, Vicente. Antología poética. Org. de Hugo Montes. Madrid: Castalia, 1990

pescado em: http://antoniocicero.blogspot.com/2011/02/vicente-huidobro-arte-poetica.html

sábado, 19 de fevereiro de 2011


shittorito
namida wo sueru suna no tama
namida wa omoki mononishi arukana

a bolinha de areia
sorvendo a lágrima se umidificou
a lágrima sim é coisa pesada
         
            Takuboku Ishikawa
woman-wiping-sweat-japanese-print

Umas palavras de Adriana Calcanhoto

Entrevista de Adriana Calcanhoto ao programa "Umas Palavras":
PARTE I: http://www.youtube.com/watch?v=EUKZ2okmoyM&feature=related
Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de almodóvar
Cores de frida kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Ah! Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto pra quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

PARTE II: http://www.youtube.com/watch?v=ltZiKfPNMLw&feature=related
Depois de ter você,
pra quê querer saber que horas são?
Se é noite ou faz calor,
se estamos no verão,
se o sol virá ou não,
ou pra quê é que serve uma canção como essa?
Depois de ter você, poetas para quê?
Os deuses, as dúvidas,
pra quê amendoeiras pelas ruas?
Para quê servem as ruas?
Depois de ter você...

PARTE III: http://www.youtube.com/watch?v=vhBW3A-zGws
Tarde turquesa
Quarenta graus
Talvez porque você não esteja
tudo lateja
Tarde sem nuvem
Cinquenta graus
Talvez por sua ausência
tudo derreta

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Memórias de menina

Folia de Reis


    Por volta dos cinco anos, quando morávamos em um sítio, meu pai costumava receber a Folia de Reis. Eu sempre pedia para q ele recebesse. Ele não gostava muito. Acho q considerava aquilo meio herético devido à sua origem pagã, origem da qual ele não sabia por livros, mas intuía em razão de seu catolicismo radical. Só de ser festa, já não era boa coisa. Ainda mais q envolvia bebida, muitas vezes. Eu, não. Eu gostava. Gostava do colorido, da cantoria embolada, da qual não entendia nada, dos passos da dança e principalmente das máscaras horrorosas dos palhaços. Eu era uma menina de cinco anos e a sombra já me fascinava, já gostava do desconhecido. Sabedorias naturais de criança. Como pude perdê-las!!
                                        FMeireles, 18.02.2011

2011

rumo ao
minimalismo
que fique apenas
o essencial
operação alquímica
busca do ouro puro
pequena pedra
pela qual me depuro

FMeireles, 18/02/2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

ninguen no tsukawanu kotoba
hyotto shite
ware nomi shireru gotoku omou hi

Há dias em que penso
ser minha linguagem,
talvez, a do vento.

Takuboku Ishikawa

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

9
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.

11
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

12
Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Pequenos grandes presentes da vida



          Na escola, sexta é o dia dedicado a trabalhar literatura com meus pequenos. Hoje, ao final de uma aula de audição de poemas em que escutamos poemas de FPessoa e de poetas brasileiros com ACalcanhoto, enquanto eu recolhia as cópias dos textos escutados, o pequeno de 11 anos me chega com os olhinhos quase em súplica: professora me dá a folha (i.e. a cópia)!
          Ele não sabia que me dava, naquele momento, um presente bem maior. Seu pedido era um raio de sol atravessando as nuvens que escureciam a tarde.
         Singelezas da vida a que muitas vezes não damos valor. Olhinhos que brilham durante a leitura do texto, mãos que acompanham o compasso da canção-poema. Minha tarde brilhava e a chuva caía. Éramos todos felizes porque foi pra isso que nascemos.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

1

Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

3
Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

7
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

da sombra

não ter sombra,
não por negá-la,
que é outra forma de tê-la,
mas por incorporá-la.
e isso só se dá ao meio-dia
ou
à meia-noite de mim.

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando -
no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltasse às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pra quem perguntou, garimpei dois trechinhos na net, mas tb estou atrás do conteúdo todo:
http://vimeo.com/4791981  

e

http://vimeo.com/4792028

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Pra quem se aventura pelas terras úmidas das palavras:
"De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
 o rumo das grotas." MBarros
A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas

sábado, 5 de fevereiro de 2011



Documentário sobre a vida e obra do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros. Alternando seqüências de entrevistas com o escritor, versos de sua obra e depoimentos de conhecedores de sua literatura, o filme traça um painel revelador da linguagem do autor considerado o poeta mais original em língua portuguesa. Com 91 anos, cerca de vinte livros publicados e vivendo atualmente em Campo Grande, Manoel de Barros é consagrado por diversos prêmios literários e é o mais vendido escritor brasileiro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A vertigem da liberdade

José Castello

       Muitas pessoas acreditam que, para fazer boa literatura, basta "se soltar". Entregar-se a impulsos frenéticos e fantasias sem limites, derramar pensamentos livres no papel ou na tela do computador, libertar-se das amarras e dos modelos que, no dia a dia, regem nossos escritos _ dos emails pessoais às listas de compras, passando pelas provas escolares e pelos vereditos legais. De fato, entregar-se ao livre fluxo do pensamento é um primeiro passo, crucial, para a escrita criativa. Uma espécie de "descarrego", um transe, caótico e impulsivo, um derramar às cegas, do qual surge a matéria prima para o trabalho literário.
          Sempre me lembro de João Cabral, para quem o trabalho do escritor se assemelhava ao ofício do escultor. O escultor parte de seu bloco de mármore, matéria prima que, através de cortes sucessivos, traz à luz, enfim, uma escultura. "Escrever não é a arte de acrescentar, ou de embelezar, mas a arte de cortar", dizia Cabral, tomando o escritor como um escultor das palavras. Acontece que o escritor não tem sua pedra, seu bloco de mármore, sua matéria primordial. É através do derramar caótico de ideias, impressões e fantasias que ele forma esse primeiro emaranhado, a partir do qual começa, depois, a trabalhar.
             Nas oficinas literárias, sempre me espanto com o número de alunos que acredita que, ao escritor, basta esse primeiro momento, do desaguar desregrado e livre de imagens e de impulsos. Muitos crêem que esta matéria prima _ esses rabiscos arcaicos, de que o escritor precisa partir _ são a própria literatura. É muito dificil convencê-los de que, embora este seja um momento essencial, sem o que nenhuma literatura autêntica se faz, ele é apenas o primeiro passo. Reagem, em geral, com fúria e decepção _ como se eu desejasse algemar sua alma.
            Sofrem, para usar uma expressão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, da "vertigem da liberdade". O sociólogo as expõe com clareza em "Bauman sobre Bauman" (Zahar, tradução de Carlos Alberto Medeiros, nas livrarias no próximo dia 21), longa entrevista que dá ao inglês Keith Tester, e que compõe uma estupenda introdução a sua obra. "Em nossos tempos de modernidade líquida", diz Bauman, "há mais razões do que em qualquer outra época para a vertigem da liberdade". Ela é nossa utopia.
            No mundo de hoje _ e os jovens escritores fornecem exemplos escandalosos disso _, acredita-se que as possibilidades humanas são ilimitadas, que todas as fronteiras já foram rompidas e as coisas do mundo se encontram, sem exceção, à espera de seu criador. Em literatura, essa ideia conduz à aposta insensata na ausência de limites, todas as cartas lançadas em uma espécie celestial de liberdade pura, que, Bauman tem toda a razão, só pode mesmo conduzir à vertigem.
         Sofro do labirinto, sei bem como é dolorosa, além de improdutiva, a experiência da vertigem. Nas crises mais fortes, preciso me agarrar a alguém, ou _ é o que sinto _ meu corpo irá se desfazer, ou ainda, para usar uma expressão de Bauman, se liquefazer. Nessas horas, a presença de um outro, que me sirva de fronteira e me ofereça um limite e um ponto de equilíbrio, é fundamental. Felizmente, não é preciso sofrer do labirinto para experimentar esse sorvedouro. Na criação literária, a experiência se repete. Quantas vezes me afogo em minhas anotações, só conseguindo respirar quando, enfim, encontro uma moldura em que consigo enquadrá-las?
         Diz Bauman, pensando não nos males do labirinto, ou na literatura, mas na vida social: "O que se ignora em silêncio é que fazer acrobacias e equilibrismo sem rede de segurança é uma arte que poucos dominam e, para todos os demais, uma receita para o desastre". Penso que essa frase de Zygmunt Bauman deveria estar fixada nas portas das salas de oficina: de muitos desastres e amargores ela nos pouparia. A experiência literária exige liberdade e transe _ sem eles, de fato, ninguém escreve. Mas exige também as tais redes de segurança de que nos fala o sociólogo; sem elas, por mais que se escreva e escreva, não se chega a lugar algum.
             Tenham paciência comigo: vou relatar mais um caso pessoal. Vivi essa experiência, de maneira intensa, nos quatro anos em que trabalhei em meu romance mais recente, "Ribamar", publicado pela Bertrand Brasil. Durante longos meses, escrevi e escrevi, enchendo cadernos e cadernos, infindáveis páginas e arquivos de computador, sem saber onde iria chegar. Não posso negar que essa travessia de meu deserto pessoal, feita necessariamente às cegas e em absoluta solidão como nas tempestades de areia, foi uma experiência fundamental. Mas aquele emaranhado de anotações, por mais vastas que fossem (e eram), ainda não constituíam um livro.
            A ele só cheguei no dia em que, por acaso, visitando minha velha mãe, a ouvi cantar uma antiga canção de ninar. Eu a nomeie "Cala a boca", decorei-a e a levei a meu irmão, Marcos, que é violonista, para que me fizesse uma partitura. A partir dela, em uma tosca adaptação matemática, cheguei enfim a uma estrutura numérica, rígida, precisa, nada libertária! _ que me serviu, por fim, de molde para meu romance. Só quando comprimi (cortando e cortando, sem parar) minhas anotações naquela forma musical, cheguei a um livro.
         Relato meu caso, que aliás já relatei outras vezes, não porque acredite que ele sirva de modelo, porque não serve. Escritores não são confeiteiros, que seguem meticulosamente as receitas das avós, ou técnicos eletricistas, que só trabalham guiados por manuais de instrução. O mais belo é isso: cada escritor, a cada livro, deve inventar sua própria mordaça, deve ser seu próprio carrasco. Para ultrapassar a vertigem, ele precisa de uma estrutura que o segure, que o ampare, que lhe sirva de limite. Que acolha seu caos interior e lhe empreste, enfim, uma forma. Essa forma, boa ou ruím, será o livro, bom ou ruim também.
       Infelizmente, grandes talentos sem perdem apegados à crença da "liberdade absoluta". Esquecem-se de que o escritor é uma espécie de fera, que só sobrevive dentro de uma jaula que ele mesmo precisa armar. Esta jaula _ esse mecanismo de segurança, como sugere Bauman _ é, enfim, a própria literatura, ou o que dela nos chega. Dentro dos livros, ferve a alma caótica dos escritores. Mas sem as fronteiras e sem as grades, ninguém consegue vê-la. Lemos, enfim, as grades, enquanto nas entrelinhas um escritor nos espreita.