sábado, 26 de fevereiro de 2011

Crônica do José Castello

Raduan Nassar, meu raptor

    No post do último dia 11, falei do silêncio de João Gilberto Noll. Hoje venho falar de meu próprio silêncio. Durante 10 dias, como vocês notaram, simplesmente desapareci. Venho explicar o que me aconteceu. Não viajei, não adoeci, não entrei de férias. As idéias não me faltaram. Não desisti de nada. Fui, simplesmente, raptado por um escritor.
    Coisas assim, volta e meia, me acontecem: às vezes, entro demais em um livro, perco-me em seus corredores de palavras, as frases me arrastam como armadilhas, e então, detido em um labirinto, já não consigo sair. Dessa vez, Raduan Nassar foi o responsável: por 10 diz, perdi-me nas páginas de Lavoura arcaica, seu grande romance de 1975.
     Explico melhor. Na semana passada, no Rio de Janeiro, ao lado de minha amiga, a psicanalista Maria Hena Lemgruber, e a convite do SESC de Copacabana, participei de mais uma versão do "Extremos: círculo de leitura de ficções radicais". Este é o terceiro ano do "Extremos", projeto que criei em parceria com meu amigo, o músico e dramaturgo Flávio Stein, mas que, por um desses mistérios que caracterizam a vida cultural em Curitiba, não vingou na cidade.
     Já no Rio, o projeto deu logo certo. Associei-me a Hena e, desde então, já fizemos leituras abertas de ficções tão espantosas quanto Água viva, de Clarice Lispector, Memórias do subsolo, de Fiodor Dostoievski, e A metamorfose, de Franz Kafka. Creio, porém, que nenhuma delas me envolveu mais quanto a leitura em voz alta de Lavoura arcaica (Companhia das Letras). Creio que Hena divide comigo o mesmo sentimento.
     O projeto "Extremos" parte de princípios simples. Em voz alta, eu e Hena nos revezamos na leitura, página a página, parágrafo a parágrafo, frase a frase, de uma ficção. Os participantes estão não só autorizados, mas são estimulados a nos interromper sempre que desejarem, para expor comentários, fazer associações livres, trazer lembranças, expressar sentimentos, evocar outros livros. É uma leitura regida pela liberdade: o mais importante é o modo como aquele livro bate em que o lê. Nenhum dogma, nenhuma teoria, nem objetivo, nenhuma exigência curricular. Só a experiência devastadora de ler.
      Nos quatro dias em que lemos Lavoura arcaica não dormi muito bem. Dia e noite pensava no livro de Raduan. Eu já o lera meia-dúzia de vezes. Mas a experiência da leitura em voz alta é atordoante. O estilo em serpente, a carga explosiva de emoções, a radicalidade das falas, tudo me envolvia e me prendia. De volta para casa, e só a muito custo, consegui escrever minha coluna do Prosa & Verso, e também minha  crônica semanal do site Vida Breve. Não podia pensar em mais nada: o livro de Raduan Nassar me engoliu.
          Sem alternativas, poupei-me um pouco deixando de lado, por alguns dias, este blog. Não tomei essa decisão com alegria. Bem que tentei rascunhar um ou outro post: nenhum deles se concluía. Tentei, ainda escrever sobre Lavoura arcaica, mas estava de tal modo tomado pelo livro que as palavras me falhavam. Hoje, quatro dias depois da concluída da leitura, enfim, consigo rememorar o que vivi. Em um caderno vermelho, guardo muitas anotações, que pretendo, aos poucos, dividir com vocês.
      Nunca se é o mesmo homem depois da leitura de um grande livro. Alguma coisa sempre se modifica em nosso interior, e foi assim também dessa vez. Só hoje me sinto um pouco mais liberto, um pouco mais dono de mim. Meu doce raptor, Raduan Nassar, em cujas palavras eu me embrenhei sem que ele soubesse disso, em cuja voz eu me perdi sem que ele pudesse reagir, meu raptor deixou em mim marcas de que nunca me livrarei.
     Assim lemos um livro: sofrendo do livro. Só assim entramos em um grande romance: como quem é vítima de um sequestro. A leitura se torna uma forma sutil de captura. Não deixa de ser uma prisão. As palavras grudam e retêm. As frases se enroscam como algemas. As vozes tomam conta de nossa mente. Terminei de reler Lavoura arcaica e nunca mais me livrarei do que li.

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