quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A vertigem da liberdade

José Castello

       Muitas pessoas acreditam que, para fazer boa literatura, basta "se soltar". Entregar-se a impulsos frenéticos e fantasias sem limites, derramar pensamentos livres no papel ou na tela do computador, libertar-se das amarras e dos modelos que, no dia a dia, regem nossos escritos _ dos emails pessoais às listas de compras, passando pelas provas escolares e pelos vereditos legais. De fato, entregar-se ao livre fluxo do pensamento é um primeiro passo, crucial, para a escrita criativa. Uma espécie de "descarrego", um transe, caótico e impulsivo, um derramar às cegas, do qual surge a matéria prima para o trabalho literário.
          Sempre me lembro de João Cabral, para quem o trabalho do escritor se assemelhava ao ofício do escultor. O escultor parte de seu bloco de mármore, matéria prima que, através de cortes sucessivos, traz à luz, enfim, uma escultura. "Escrever não é a arte de acrescentar, ou de embelezar, mas a arte de cortar", dizia Cabral, tomando o escritor como um escultor das palavras. Acontece que o escritor não tem sua pedra, seu bloco de mármore, sua matéria primordial. É através do derramar caótico de ideias, impressões e fantasias que ele forma esse primeiro emaranhado, a partir do qual começa, depois, a trabalhar.
             Nas oficinas literárias, sempre me espanto com o número de alunos que acredita que, ao escritor, basta esse primeiro momento, do desaguar desregrado e livre de imagens e de impulsos. Muitos crêem que esta matéria prima _ esses rabiscos arcaicos, de que o escritor precisa partir _ são a própria literatura. É muito dificil convencê-los de que, embora este seja um momento essencial, sem o que nenhuma literatura autêntica se faz, ele é apenas o primeiro passo. Reagem, em geral, com fúria e decepção _ como se eu desejasse algemar sua alma.
            Sofrem, para usar uma expressão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, da "vertigem da liberdade". O sociólogo as expõe com clareza em "Bauman sobre Bauman" (Zahar, tradução de Carlos Alberto Medeiros, nas livrarias no próximo dia 21), longa entrevista que dá ao inglês Keith Tester, e que compõe uma estupenda introdução a sua obra. "Em nossos tempos de modernidade líquida", diz Bauman, "há mais razões do que em qualquer outra época para a vertigem da liberdade". Ela é nossa utopia.
            No mundo de hoje _ e os jovens escritores fornecem exemplos escandalosos disso _, acredita-se que as possibilidades humanas são ilimitadas, que todas as fronteiras já foram rompidas e as coisas do mundo se encontram, sem exceção, à espera de seu criador. Em literatura, essa ideia conduz à aposta insensata na ausência de limites, todas as cartas lançadas em uma espécie celestial de liberdade pura, que, Bauman tem toda a razão, só pode mesmo conduzir à vertigem.
         Sofro do labirinto, sei bem como é dolorosa, além de improdutiva, a experiência da vertigem. Nas crises mais fortes, preciso me agarrar a alguém, ou _ é o que sinto _ meu corpo irá se desfazer, ou ainda, para usar uma expressão de Bauman, se liquefazer. Nessas horas, a presença de um outro, que me sirva de fronteira e me ofereça um limite e um ponto de equilíbrio, é fundamental. Felizmente, não é preciso sofrer do labirinto para experimentar esse sorvedouro. Na criação literária, a experiência se repete. Quantas vezes me afogo em minhas anotações, só conseguindo respirar quando, enfim, encontro uma moldura em que consigo enquadrá-las?
         Diz Bauman, pensando não nos males do labirinto, ou na literatura, mas na vida social: "O que se ignora em silêncio é que fazer acrobacias e equilibrismo sem rede de segurança é uma arte que poucos dominam e, para todos os demais, uma receita para o desastre". Penso que essa frase de Zygmunt Bauman deveria estar fixada nas portas das salas de oficina: de muitos desastres e amargores ela nos pouparia. A experiência literária exige liberdade e transe _ sem eles, de fato, ninguém escreve. Mas exige também as tais redes de segurança de que nos fala o sociólogo; sem elas, por mais que se escreva e escreva, não se chega a lugar algum.
             Tenham paciência comigo: vou relatar mais um caso pessoal. Vivi essa experiência, de maneira intensa, nos quatro anos em que trabalhei em meu romance mais recente, "Ribamar", publicado pela Bertrand Brasil. Durante longos meses, escrevi e escrevi, enchendo cadernos e cadernos, infindáveis páginas e arquivos de computador, sem saber onde iria chegar. Não posso negar que essa travessia de meu deserto pessoal, feita necessariamente às cegas e em absoluta solidão como nas tempestades de areia, foi uma experiência fundamental. Mas aquele emaranhado de anotações, por mais vastas que fossem (e eram), ainda não constituíam um livro.
            A ele só cheguei no dia em que, por acaso, visitando minha velha mãe, a ouvi cantar uma antiga canção de ninar. Eu a nomeie "Cala a boca", decorei-a e a levei a meu irmão, Marcos, que é violonista, para que me fizesse uma partitura. A partir dela, em uma tosca adaptação matemática, cheguei enfim a uma estrutura numérica, rígida, precisa, nada libertária! _ que me serviu, por fim, de molde para meu romance. Só quando comprimi (cortando e cortando, sem parar) minhas anotações naquela forma musical, cheguei a um livro.
         Relato meu caso, que aliás já relatei outras vezes, não porque acredite que ele sirva de modelo, porque não serve. Escritores não são confeiteiros, que seguem meticulosamente as receitas das avós, ou técnicos eletricistas, que só trabalham guiados por manuais de instrução. O mais belo é isso: cada escritor, a cada livro, deve inventar sua própria mordaça, deve ser seu próprio carrasco. Para ultrapassar a vertigem, ele precisa de uma estrutura que o segure, que o ampare, que lhe sirva de limite. Que acolha seu caos interior e lhe empreste, enfim, uma forma. Essa forma, boa ou ruím, será o livro, bom ou ruim também.
       Infelizmente, grandes talentos sem perdem apegados à crença da "liberdade absoluta". Esquecem-se de que o escritor é uma espécie de fera, que só sobrevive dentro de uma jaula que ele mesmo precisa armar. Esta jaula _ esse mecanismo de segurança, como sugere Bauman _ é, enfim, a própria literatura, ou o que dela nos chega. Dentro dos livros, ferve a alma caótica dos escritores. Mas sem as fronteiras e sem as grades, ninguém consegue vê-la. Lemos, enfim, as grades, enquanto nas entrelinhas um escritor nos espreita.

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