Carta a Adolfo Rocha - Jun. 1930
Meu prezado camarada:
Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por temperamento, instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol — ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua — o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.
Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido — mas era a minha opinião, que não a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela extensão da sensação.
Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias.”
É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente .
Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de ......
Fernando Pessoa
6-1930
IN: Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 69.
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