Clarice escrevia um passo à frente do mundo. Talvez um passo atrás, por que não? Escrevia nos bastidores _ como uma atriz que se recusasse a subir ao palco, preferindo desempenhar seu papel na solidão dos camarins. Escrevia, como ela mesma disse, não "para fora" _ como as pessoas que lavam, ou passam para fora _, mas "para dentro". Não trabalhava com a claridade, mas com a escuridão. Em "Água viva", com ênfase e coragem, ela resume: "A escuridão é meu caldo de cultura. A escuridão feérica".
Estranho voltar a essas ideias em pleno sol de Copacabana, onde tudo se mostra e tudo se expõe. Onde tudo parece feito de luz e a verdade se torna escandalosa. Como um médico que se fecha para escutar um coração, Clarice ouvia, em silêncio, o sutil pulsar da vida _ mas como se faz isso na zoeira de nossos dias? Como lidar com vestígios e ruídos em um mundo de eventos, luzes e poses?
Falava, sem medo, da "potência da incompreensão", mas como defender essa vida que se liberta do entendimento em um mundo que, a todo momento, obsessivamente, se auto-explica? Acreditava Clarice que o escritor lida com elementos anteriores ao pensamento, e portanto indiferentes à ordem da explicação. Que ele é um jardineiro que, em vez de regar flores, rega sementes _ o que, visto de longe, parece um chão vazio. Lida com elementos muito frágeis que, se desvelados, não resistem à dura prova da realidade. A realidade é pragmágica. A realidade exige sentimentos claros e espontâneos. A realidade é gulosa.
Clarice desprezava, com horror, o culto da memória _ e, em "Água viva", diz que procura ver estritamente no momento em que vê, e não fora dele. Com isso, recusava a memória explicativa, que distorce e engorda o presente para discipliná-lo e organizá-lo.
Buscava uma escrita que se parecesse com a delicadeza da música instrumental, que não representa outra coisa, mas apenas é. Amava as coisas como elas são: os cachorros com seu silêncio, as árvores com sua obsessão pelo alto, o corpo com suas baixezas. Via, por isso, a literatura como um grito, não de desespero, mas um chamado à vida. "Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita", ela escreve. Grito que, no tumulto moderno, se esfarela.
Não pensava duas vezes ao afirmar que "o verdadeiro pensamento parece sem autor". Aos escritores da moda, com suas griffes, suas agendas e suas poses; aos escritores "sérios", com suas declarações e seu estilo; aos escritores que sabem o que fazem, com sua cegueira disfarçada de luz _ Clarice preferia afirmar o desprezo pela autoria. Quando quase todos escrevem para aparecer, Clarice escrevia para desaparecer. Agia como um mágico que, em vez de puxar um coelho de uma cartola, nela o afoga para sempre.
Clarice teve o poder de escrever coisas que lemos como nossas, e não como dela. Nâo lhe interessava escrever "para o leitor", mas "ser" esse leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias. As palavras, de fato, lhe eram alheias.
Escrevia sem ilusões e sem fantasias _ sem ideais. O desprezo enfático pelos ideais: este parece ser, ainda hoje, seu crime mais grave. Esperar? Sonhar? Desejar? Aspirar? Clarice preferia ser. Talvez por isso não conseguisse parar de escrever: se parasse, a vida lhe escaparia
José Castello
em um mundo de eventos, luzes e poses ainda há metapoética... nós, lendo Clarice, que nos encontramos com o que sentimos e não tivemos capacidade de verbalizar. pra mim, é como se ela fosse uma "tradutora" da vida.
ResponderExcluirô, mulher...
:*