José Castello - 25.01.2011
Releio _ sem parar _ um pequeno ensaio de Virginia Woolf que me ajuda a entender meu caminho pessoal na escrita. Sem parar, sem parar, como uma obsessão benigna, as palavras de Virginia me perseguem e me desenham. Elas me ajudam a formular, com mais firmeza, uma resposta que sempre dou quando me perguntam, afinal, quem sou eu. "Sou um leitor comum", tenho insistido em responder, e agora Virginia Woolf me encoraja a repetir. O ensaio, é claro, se chama "O leitor comum", tem só 33 linhas e abre uma bela reunião de dispersos de Virginia Woolf lançada pela Editora Graphia, em tradução e seleção de Luciana Viégasno, ano de 2007. O livro se chama, ele também, O leitor comum, definindo uma posição que Virginia me empresta, quase 70 anos após sua morte, para me ajudar a fixar minha própria posição. Vivemos na época dos crachás, das senhas eletrônicas, do Currículo Lattes e dos cartões de visita. A cada passo, somos obrigados a responder à pergunta constrangedora: "Quem é você?" Se você esqueceu o crachá, ou não recorda a senha, está frito. Sem um currículo, ou um cartão, você não é ninguém.
Não acredito que ninguém possa fornecer, com sinceridade, uma resposta segura a essa pergunta, até porque somos várias coisas e várias pessoas ao mesmo tempo, a ideia da identidade é só uma ilusão que nos ajuda a viver. Mas já que insistem em perguntar, se sou crítico literário, se sou professor, se sou um cronista, ou sou um especialista, enfim, como afinal me defino, imito Virginia e respondo: "Sou um leitor comum". E confesso que me sinto bastante bem.
Distingue Virginia o leitor comum de outros leitores mais aparelhados, ou "autorizados", como os críticos de escola, os professores de carreira e os magistrados _ por quem, não preciso dizer, tenho grande respeito. Mas se ele é "comum", isto é, trivial, ordinário, habitual, ao se definir por um adjetivo que, em vez de delimitar e separar, expande e mistura, como saber quem é esse leitor? Como saber que sou eu? Virginia o (me) retrata: "Lê para seu próprio prazer muito mais do que para repartir conhecimento ou corrigir opiniões alheias". A ênfase está em uma palavra: prazer. Palavra vaga, mas forte, que é mais um corredor pelo qual vários sentimentos e significados escorrem.
Meu médico me disse, recentemente, que preciso descansar mais e trabalhar menos. Argumentou: "Seu problema não é que seu trabalho lhe pese, mas que você o ama. Como gosta muito do que faz, você acredita que tem sempre mais forças para gastar, quando na verdade não tem". Está aí: o prazer, como muito bem alerta meu médico, tem também seu lado doentio. Doença comum, mas atroz, ela atinge todos os que amam a leitura. "Acima de tudo, ele é guiado pelo instinto de criar para si mesmo alguma espécie de plenitude", prossegue Virginia, e aqui fala da fome estranha que a literatura é capaz de despertar, fome que se mata não com alimentos, mas com a propagação da própria fome. Fome de sentir fome, isto é, de se sentir vivo.
Plenitude: o leitor comum lê não só porque se apaixonou pelo que lê, mas lê porque o texto o deixa pleno. Também o escritor se pauta por esse desejo de completude. É um solitário, que escreve como se a permanência do mundo dependesse exclusivamente de sua transcrição contínua _ e aqui, imitando Virginia, lembro de Montaigne, em cujos ensaios, cinco séculos depois, continuamos a ver nossa face refletida. O estilo de Montaigne é lento, fragmentário, ondulante, "confuso". Ele se define, Virginia vem em meu socorro, pela "desordem, polimorfia, imperfeição".
Nada do rigor exigido das dissertações acadêmicas. Nada da frieza que se espera dos laudos científicos, ou das argumentações jurídicas. Montaigne partia sempre de sua (nossa) interminável "dificuldade de expressão". Partia da ideia de que a palavra é insuficiente, e por isso é preciso tentar de novo, e de novo, e ainda uma vez. Por isso também, leitores comuns apaixonados, não paramos de ler. (E aqui já estou em outro ensaio, "Montaigne", que se inicia na página 23 do mesmo livro de Virginia.)
Sabia Montaigne _ estranho, mas precioso exemplo do leitor comum _ que estamos sempre em descompasso com a vida exterior, que ela nos foge, que ela não se submete à ditadura da linguagem, porque a linguagem é sempre espessa, arbitrária e dogmática, e a vida não suporta freios, nem padrões. Somos todos parecidos, muito parecidos, com o Coelho Branco que corre apressado pelas páginas do Alice, de Lewis Carroll, e que, com um relógio na mão, não se cansa de repetir: "É tarde, é tarde, é tarde". Sim, a linguagem nos salva, mas esse é um salvamento imperfeito, pois ela está em contínuo descompasso com o tempo e com o real. Tenta, esforça-se, mas não consegue. Foi a consciência desse "não consegue" que fez de Montaigne um gênio.
Montaigne, que odiava a convenção e a cerimônia, sabia que esses são dois defeitos fundamentais da língua. Basta abrir um dicionário e logo encontramos um número limitado e duro de sinônimos, de significados, de aproximações, e só porque eles são poucos e limitados a lingua sobrevive e podemos usá-la para nos aproximar e nos comunicar. Contra a convenção e a cerimônia _ isto é, a ordem e os protocolos, a forma empedrada dos dicionários _ Montaigne propunha o recolhimento e a contemplação. Volto ao leitor comum: que dois estados melhor o definem?
Dizia Montaigne, ainda, que, se a liberdade interior é fundamental para o leitor, ela deve também ser vigiada. Defendia assim a criação de um "censor interno", o único juiz a que, de fato, devemos nos submeter: nós mesmos. Se o leitor comum se deixa guiar pelo prazer _ e, portanto, por impulsos, por paixões súbitas, pela imaginação fervente _, ele deve também impor alguma ordem a essa "cativante confusão" que carrega sempre dentro de si. Isso não significa que deva se submeter a padrões externos, regras oficiais, protocolos acadêmicos, ou normas de qualquer outra ordem. Não: o leitor comum (Montaigne como ideal) é livre não só porque se permite toda sorte de afeto e devaneio, mas porque os vigia de perto, zela por eles e os interroga. E, sobretudo, porque os ama.
O leitor comum lê mais por prazer do que por conhecimento. Guia-o o instinto de criar para si mesmo alguma forma íntima de plenitude _ o desejo de encontrar o obejto que lhe falta. A seu respeito, Virginia Woolf diz mais, sem poupá-lo (sem me poupar): "É impaciente e descuidado e superficial". Não porque aprecie o erro, mas porque sabe que a questão não é "não errar", mas sim "errar bem". Não porque despreze o real, mas porque sabe que o real é complexo e fugidio, não passa de um bichinho assustado que se esconde nas mais estreitas frestas e que se transfigura nas imagens mais traiçoeiras.
Como se pauta pelo prazer, e não pelo protocolo, o leitor comum lê mais desarmado, e por isso o texto algumas vezes lhe rasga a alma e o derruba. Sim, já adoeci de muitos livros. Lembro a primeira vez que, aos 19 anos, li A paixão segundo G.H., de CLarice Lispector e a apatia asustadora que a sucedeu. Antes disso: recordo a febre que, no meio da adolescência, me provocaram os poemas de Bandeira e de Vinicius. Antes ainda: em torno dos dez ou onze anos, o espanto produzido em mim pela leitura de Robinson Crusoe e também de trechos das Mil e uma noites. Toda leitura causa um impacto e o leitor comum, porque antes de abrir o livro despôs suas armas e abriu o coração, sem defesas, a ele sucumbe.
A impaciência, o descuido, a atenção superficial não são defeitos, mas efeitos da busca obsessiva do prazer. O leitor comum e seu livro se parecem com dois corpos que fazem amor: apressados, se agarram com fúria; descuidados, não se importam em impor um ao outro pequenas feridas que serão, elas tambem, fontes secundárias de prazer; como bailarinos, deslizam pela superfície do corpo amado, em silêncio e abnegação; não há espaço para perguntas, o diálogo não cabe, as palavras revelam sua incrível pobreza. Leitores comuns são amantes que, em sofreguidão, se agarram a um livro.
Sempre aprendo muito lendo Virgina Woolf _ e isso talvez seja mais um efeito de minha condição de leitor comum. Nessa posição, também não me interesso pelas leituras autorizadas, as classificações sistemáticas e os raciocínios lógicos. Cânones, padrões, avaliações _ para que? Tudo isso se assemelha, sempre, ao escudo com que o cavaleiro se defende do dragão. Quando o leitor comum lê um livro, aquilo não é um estudo, ou uma pesquisa, mas uma experiência. Diz Virginia: "Basta de morte, é a vida que interessa".
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