Ganha destaque, na atual etapa da corrida sucessória, o tema da descriminalização do aborto. Trata-se de questão complexa, que por envolver convicções pessoais e religiosas só poderia, a rigor, ser decidida legitimamente por meio de uma consulta popular.
Nem por isto é despropositado que o assunto se torne presente no debate eleitoral. É direito do cidadão conhecer as opiniões dos candidatos sobre o tema, mas em vez de ocasionar uma discussão racional e franca, a disputa sucessória tem-se caracterizado por uma atitude que, sem exagero, merece ser classificada como obscurantista.
O termo vem a propósito, não pela rasa identificação que se costuma fazer entre a firmeza de convicções religiosas e um espírito medieval de caça às bruxas. Pode-se perfeitamente ser contra o aborto, em qualquer circunstância, sem ser um fanático fundamentalista -e mesmo sem professar nenhuma religião.
O obscurantismo se estabelece na campanha eleitoral quando o que se procura é antes confundir o eleitor do que esclarecer as próprias posições.
Tome-se, por exemplo, o slogan do "direito à vida", presente na propaganda eleitoral de ambos os candidatos ao segundo turno. Como se sabe, tais palavras têm um sentido claro para o eleitorado católico, e cristão de modo geral, no que apontam para uma condenação do aborto, mesmo nos casos já admitidos na lei brasileira -o de gravidez decorrente de estupro e o de risco de morte para a mãe.
Nenhum dos dois candidatos propõe, ao que se saiba, a revogação desse dispositivo. Mas que recorram ao lema do "direito à vida" é sintomático da dificuldade de ambos em defender o que já existe, na legislação, de contrário às ideias dos eleitores que pretendem conquistar.
Esta Folha considera que a legislação vigente deve ser flexibilizada, de modo a permitir que, já sofrendo numa circunstância evidentemente dramática e dolorosa, qualquer mulher possa interromper a gravidez sem que seja considerada criminosa por isto.
Cerca de 1,1 milhão de abortos clandestinos são feitos anualmente no país. Em condições muitas vezes precaríssimas, constituem a terceira ou quarta causa de mortalidade materna no Brasil. Em 56 países, que representam 40% da população mundial, o aborto é permitido sem restrições até a 12ª semana de gravidez -limite máximo que se poderia admitir.
Com certeza, políticas públicas de esclarecimento e garantia de acesso a meios anticoncepcionais, como a pílula do dia seguinte, poderiam, se amplas, intensivas e duradouras, prevenir a gravidez indesejada e reduzir de maneira drástica o número de mulheres que se valem, numa situação extrema, do traumático recurso.
Alguns setores religiosos, como se sabe, opõem-se até mesmo ao uso de anticoncepcionais. A sociedade como um todo evoluiu na direção oposta -e um plebiscito sobre o aborto, mesmo se não confirme essa tendência, haveria, ao menos, de esclarecer os vários aspectos envolvidos na questão.
Editorial Folha de São Paulo, 10.10.2010
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