sexta-feira, 4 de março de 2011

Crônica do José Castello

A poesia do encontro
         Uma parábula judaica conta que Deus usou dois fogos para criar as tábuas da Lei: o fogo negro, que desenha as letras que lemos, e o fogo branco, que desenha o espaço entre essas letras. Graças aos espaços vazios abertos pelo fogo branco podemos ler as letras da Lei, redigidas com o fogo negro. Não existissem os intervalos brancos, as ausências, e a Lei seria ilegível.
            Leio um resumo dessa bela parábula em Nocturno, o inspirador livro do português Rui Chafes com texto de Marcio Doctors (publicado pela Fundação Eva Klabin). Uma longa entrevista que Rui concede a Marcio me apresenta a história. Em bom momento. Antes de chegar a ela, eu procurava um ponto de respiração que me permitisse uma aproximação mais fina do trabalho de Rui Chafes, que o livro reproduz em belas fotografias.
           A parábola me ajuda a pensar a respeito das dificuldades que enfrentamos durante a leitura, não só de um livro, mas de qualquer arte. De qualquer coisa _ uma paisagem, um mapa, uma pessoa, um cão. Ler é uma tarefa difícil, que inclui um tanto de cegueira. O fogo negro de que fala a história.
           Ajudam-me as palavras de Márcio em outro momento da mesma entrevista. Ele diz: "Se é certo que não é possível reduzir as palavras às coisas, que não se comunicam entre si porque são irredutíveis umas às outras, podemos, no entanto, na arte trabalhar com a poesia do encontro e não com a rigidez da busca".
          O encontro inclui pausas, hiatos, separações, negações _ ou as letras não se deixam ler. É como na respiração, para dentro, para fora, em uma alternância essencial. Sem a pausa (a expiração) ninguém respira. Letras negras, letras brancas, só o contraste entre elas nos permite a leitura. Quem quer ler só a claridade, cega.
            As próprias coisas só existem se as escondemos sob o manto das ideias. Agora é Rui quem vem em meu socorro: "Só acredito nos objetos enquanto possuírem estatuto de pensamento". Muitas pessoas, avessas ao hábito de pensar, preferem um mundo gerido pela objetividade, pelos fatos e pelos resultados. Um mundo bruto e _ eles dizem _ "real". Quanto a mim, eu fujo desse mundo. A literatura me serve de abrigo

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