sexta-feira, 11 de março de 2011

Memórias de menina

          Certas vezes ao ano, a tia lhe chamava para visitar a avó que morava noutra localidade, noutro distrito de Valença. Era mais ou menos sempre a mesma situação. Elas pegavam o ônibus em João Honório e iam até Valença. De lá, pegavam outro que iria para Santa Rita do Jacutinga, mas desciam em Pedro Carlos. Pegavam sempre o ônibus da tarde e desciam em Pedro Carlos por volta de dezessete e trinta, dezoito horas. Até o sítio da avó, a Cascata, era preciso caminhar um bom trecho a pé.
            A menina tinha por volta de seus oito, nove anos, e sua imaginação tornava esse caminhar diferente. Ela sempre fora apaixonada pela natureza da região: muita água, muitas nascentes, muita vegetação densa, marcada por pequenos cursos de água... A estradinha que percorriam ficava entre duas cadeias de morros, cheia de curvas, barulhos de bois e bichos das matas próximas. Juntava a isso, um escurecer crescente em razão da entrada da noite. É o que ela, hoje, conhece como hora de Anúbis.
        Esse escurecer gerava sombras e mudanças de cor e som no mundo claro e previsível produzido pelo Sol. Os pássaros estavam buscando seus ninhos e seus pousos para atravessarem a noite. Havia piados e cantos diferentes naquelas árvores tão próximas. Os bois, mugindo mansamente, retornavam aos currais. Um ou outro, solitário, mugia longo e longe.
           Porém, o que mais impressionava a menina eram os formatos que as árvores dos altos dos morros tomavam. O escurecer tornava-as maiores, parecia que se tornavam gigantes, gigantes negros de diversas formas, todos ao alto a acompanharem seus passos. E ela, embaixo, pequena e indefesa, não conseguia deixar de olhá-los e procurar identificar-lhes as formas e, com isso, suas identidades. Hoje ela reconhece neles algo como aqueles gigantes que Dom Quixote encontrava e via nos moinhos de vento com os quais se deparava em suas andanças justiceiras. Ela, menina, já tinha seus gigantes que, à semelhança de um exército silencioso, acompanhavam seus passos. E, assim como Dom Quixote, os gigantes também residiam nela, antes que naquele trajeto semi-escuro que ela cortava.
               A avó reclamava com a tia que era preciso mudar o horário daquela viagem. Porém, a menina mesmo de nada reclamava. Sempre que se falava em fazer nova viagem, ela já antevia o escurecer, os barulhos, os gigantes, coisas da vida... Coisas que era preciso viver, pelo fato de simplesmente haver um trajeto a ser percorrido, trajeto, ora claro e previsível, ora escuro e misterioso, mas sempre denso, cheio de nascentes e margens.

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