sexta-feira, 4 de março de 2011

Epístolas pessoanas

Carta a Adolfo Casais Monteiro

Lisboa, 20 de Janeiro de 1935.

Meu querido Camarada:
           Muito obrigado pela sua carta. Ainda bem que consegui dizer alguma coisa que deveras interessasse. Cheguei a duvidar de que o fizesse, pela maneira precipitada e corrente como lhe escrevi, ao sabor da conversa mental que estava tendo consigo.
             Respondo e com igual espontaneidade, portanto falta de método e de arrumação, à sua carta agora recebida. Mas, enfim, qualquer coisa respondo. Sigo ao acaso os pontos a que tenho de responder.
           Quanto ao seu estudo a meu respeito, que desde já, por o que é de honroso, muito lhe agradeço: deixe-o para depois de eu publicar o livro grande em que congregue a vasta extensão autónima do Fernando Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano. E então V. terá os dados suficientes: esse livro, a faceta subsidiária representada pela «Mensagem», e o bastante, já publicado, dos heterónimos. Com isto já o Casais Monteiro poderá ter uma «impressão de conjunto», supondo que em mim haja qualquer coisa tão contornada como um conjunto.
              Em tudo isto, reporto-me simplesmente a poesia, não sou porém limitado a esse sorriso das letras. Mas, quanto a prosa, já me conhece, e o que há publicado é o bastante. Até à data, que indico como provável para o aparecimento do livro maior, devem estar publicados o Banqueiro Anarquista (em nova forma e redacção), uma novela policiária (que estou escrevendo e não é aquela a que me referi na carta anterior) e mais um ou outro escrito que as circunstâncias possam evocar.
              É extraordinariamente bem feita a sua observação sobre a ausência que há em mim do que possa legitimamente chamar-se uma evolução qualquer. Há poemas meus, escritos aos vinte anos, que são iguais em valia — tanto quanto posso apreciar — aos que escrevo hoje. Não escrevo melhor do que então, salvo quanto ao conhecimento da língua portuguesa — caso cultural e não poético. Escrevo diferentemente. Talvez a solução do caso esteja no seguinte.
               O que sou essencialmente — por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja — é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como cornparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento.
              Creio ter dado, nestas palavras apressadas, qualquer vislumbre de uma ideia nítida do em que concordo com, e aceito, o seu critério de que em mim não tem havido propriamente evolução.
              Refiro-me, agora, ao caso da publicação de livros meus num futuro próximo. Não há razão para se preocupar com dificuldades nesse sentido. Se quiser realmente publicar o Caeiro, o Ricardo Reis e o Álvaro de Campos, posso fazê-lo imediatamente. Sucede, porém, que receio a nenhuma venda de livros desse género e tipo. A hesitação está só aí. Quanto ao livro grande de versos, esse, como qualquer outro, tem desde já a publicação garantida. Se penso mais nesse do que noutro, é que acho mais vantagem mental na publicação dele, e, apesar de tudo, menos risco de inêxito na sua edição.
                Quanto à publicação do Banqueiro Anarquista em inglês, também aí não haverá, creio eu, mas por outras razões, dificuldade notável. Se na obra houver capacidade de interesse para o mercado inglês, o agente literário a quem eu a enviar, a colocará mais tarde ou mais cedo. Não será preciso recorrer ao apoio do Richard Aldington, cuja indicação todavia, muito lhe agradeço. Os agentes literários (respondo agora à sua pergunta sobre o que são) são indivíduos, ou firmas, que colocam os livros ou escritos dos autores junto de editores ou directores de jornais, que eles, melhor que os autores, avaliam quais devem ser, mediante uma comissão, em geral de dez por cento. Neste ponto, sei o que hei-de fazer e a quem me hei-de dirigir — coisa rara, aliás, em mim, em qualquer circunstância prática da vida.
         Abraça-o o camarada amigo e admirador
           Fernando Pessoa

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980. - 211. 1ª publ. in “Diário Popular”. Lisboa: Set. 1943.

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