Kundera considera Cervantes como um dos fundadores dos tempos modernos. Para Kundera, com Cervantes teve início a arte européia da exploração do ser do homem, o ser esquecido como consideram Heidegger e Husserl. Para o autor tcheco, os grandes temas existenciais discutidos em Ser e Tempo já vinham sendo explorados nos romances produzidos nos últimos quatro séculos.
Kundera retoma, então, diversos autores e mostra como cada um foi responsável por explorar diferentes aspectos da existência em suas obras:
Cervantes: a aventura;
Richardson: a vida secreta dos sentimentos;
Balzac: o enraizamento do homem na História;
Flaubert: a exploração do cotidiano;
Tolstói: a intervenção do irracional no comportamento humano;
Proust: o momento passado;
Joyce: o momento presente;
Thomas Mann: os mitos e o começo dos tempos;
Etc, etc.
O romance é, segundo Kundera, o locus da ‘paixão de conhecer’, apresentada por Husserl como a marca, por excelência, do início dos tempos modernos. Essa paixão protege o homem do esquecimento e ilumina constantemente o mundo da vida. Para exemplificar, cita um dos seus autores preferidos – Hermann Broch: “Descobrir o que somente um romance um romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.”
Cervantes, a o escrever Dom Quixote, mostra um mundo multifacetado, no qual a verdade absoluta se fragmentou em muitas verdades relativas diferentes e até contraditórias. Cada personagem representa um fragmento da verdade e a única certeza é reconhecer a incerteza, a relatividade. Dom Quixote sai de casa e encontra um mundo do qual o Juiz supremo se ausentou. Então é preciso consertá-lo, impor ordem, discernir claramente o bem do mal.
Entretanto, o tempo em Dom Quixote ainda não é o tempo histórico e o mundo parece ilimitado. É um tempo sem começo ou fim, um espaço sem fronteiras. Isso tem fim com Balzac. Agora o romance embarca no trem da historia que promete aventuras e glórias a seus passageiros. Mas por pouco tempo...
Já a Ema Bovary de Flaubert vê seu horizonte estreitar-se. Seu cotidiano é tedioso, nostálgico, as aventuras não pertencem a seu mundo e restam-lhe os sonhos. Assim, o infinito do mundo exterior dá lugar ao infinito da alma. Porém, a História, como força supra-humana, apossa-se do homem e o infinito da alma perde seu encanto. Agora temos K diante do tribunal. A História como força apossa-se do indivíduo e toma-lhe todos os pensamentos. Nem na cela K tem mais a possibilidade de sonhar, pensa apenas em seu processo.
Desse modo descrita, a história do romance se mostra como uma história em paralelo dos tempos modernos. Dom Quixote retorna, séculos depois, na pele do agrimensor K ( O Castelo, Kafka), mas o personagem central vive uma aventura que lhe é comandada de fora.
Se nos voltarmos para as questões dos valores, Kundera nos mostra que em Homero ou em Tosltói a guerra possuía um sentido, mas em O bravo soldado Chveik, de Hasek, o personagem central e seus companheiros vão pra frente de batalha sem saber por quê, e, pior ainda, sem se interessar em sabê-lo. É um mero exercício de força, despido de qualquer sentido, pois mesmo aqueles que estão na luta não acreditam na propaganda que a justifica. Esse exercício sem sentido da força é também uma das marcas de Kafka.
“Kafka e Hasek nos põem em confronto com este imenso paradoxo: durante a época dos tempos modernos, a razão cartesiana corroía, um após outro, todos os valores herdados da Idade Média. Mas, no momento da vitória total da razão, é o irracional puro (a força querendo apenas seu querer) que se apossará do cenário do mundo, porque não haverá mais nenhum sistema de valores comumente admitido que possa lhe fazer obstáculo.”
Continua...