Por Joca Reiners Terron
Marcando o lançamento do selo Má Companhia, eis um dicionário deveras idiossincrático acerca da literatura maldita brasileira em três capítulos. Ó raios, que maldição!
Glauco – Conde Mattosão, o vampiro da poesia marginal, o único poeta surgido em meio aos eflúvios alcoólicos do mimeógrafo dos anos 70 que ainda não foi devidamente aceito/estudado/consagrado. Antes de ficar cego, Glauco Mattoso experimentou com todas as formas poéticas possíveis e impossíveis (sim, pois acabou inventando algumas). Depois da cegueira definitiva nos anos 90, iniciou seu projeto de sonetizar a realidade (já é o recordista do gênero na língua portuguesa, com mais de 2 mil sonetos), sempre abordando “a fealdade, a sujidade, a maldade, o vício, o trauma, o estigma”. Daí, talvez, continuar a ser o que ele mesmo definiu como “melhor ser sapão de brejinho do que sapinho de brejão” ou algo assim pois cito de memória.
Geraldo – “Geraldo” é um nome caro à maldição brazuca; para provar, listo alguns geraldos injustamente esquecidos pelos leitores, tais como Geraldo Ferraz (autor de Doramundo, um romance “de forças primitivas, em que os personagens reais são de fato o sexo, a noite, o medo, a treva”, nos dizeres de Adolfo Casais Monteiro; Ferraz só é lembrado quando, por sorte, lembram de Pagu, de quem foi marido e protetor); Geraldo Vieira (mal foi reeditado há menos de uma década, voltou imediatamente ao esquecimento); Gerardo Mello Mourão (que não bastasse ser poeta, ainda foi líder integralista — é maldição demais — e teve o nome grafado incorretamente no necrológio em plena terra natal); etc.
Hilda – Mas também poderia ser Hilst, Hilda, grande dama boquirrota, autora de Contos D’Escárnio, Com Meus Olhos de Cão, Bufólicas etc; como Brigitte Bardot, Hilda experimentou em sua vida a suprema maldição feminina. Ou seja, foi um pitéuzinho na juventude e imenso trublufú de alpiste na maturidade. Pior que isso só mesmo ter sido a grande, complexa e radical criadora literária que foi. Para encerrar, versinhos: “De pau em riste/ O anão Cidão/ Vivia triste./ Além do chato de ser anão/ Nunca podia/ Meter o ganso na tia/ Nem na rodela do negrão”.
Humorismo – De acordo com Juan José Saer (e novamente recorro a um argentino para justificar a insânia tropical), “a origem do realismo se encontra na comédia, que é, digamos, a arte da realidade como tal”. E completa: “Cervantes, pai do realismo, introduz na narração a comédia como fonte e garantia de historicidade”. No caso brasileiro, porém, uma obra literária caracterizada pelo humor está fadada — apesar de toda a ironia machadiana e do Brás Cubas — a jamais ser levada a sério; somos, brasileiros, mais realistas que a realidade (daí nossa moeda se chamar real), e nossa verve existencial e ginga parecem exigir uma literatura séria, sisuda, compenetrada. Ou seja, somos sérios ao menos no papel. — Para mais, conferir adiante o verbete Realismo.
Imaginação – Nunca precisamos imaginar nada, essa é a verdade. Tá tudo aí, ó, basta subir na bananeira e pegar. Como fazer, então, pra competir com a fauna e a flora, ignorar mulheres boazudas (cuecas, pra quem curte) e o calorão-de-meu-Deus? Como a imaginação literária poderia competir com o capricho Divino aplicado na construção deste imenso condomínio tropical? Como? Ah, melhor abrir uma gelada (ou então escrever um romance cinzento sobre relações familiares fracassadas e traumas passado na cidade grande).
Jaime Rodrigues – Falávamos de humor; o autor de Phutatorius (1979, reeditado em 2004) aplicou todo o seu poder satírico ao descrever a tentativa de fuga do inferno das convenções de um homem que testemunha, a partir de sua poltrona, um elefante despejando black shit na cabeça de seus concidadãos enquanto sobrevoa a cidade. Só que (quase) nenhum leitor viu graça nisso.
Karam – Manoel Carlos Karam fez tudo errado e, ao errar, acabou acertando tudo. Nasceu catarinense, mas sempre foi curitibano (o que só aumenta a confusão). Escreveu contos longos quando deveriam ser curtos e romances curtos quando deveriam ser longos, tudo de modo fragmentário. Falou sério através de narrativas engraçadíssimas e sempre tentou ser discreto do jeito mais extravagante possível, fracassando definitivamente. Escreveu Encrenca e Cebola, dois romances brasileiros dos mais interessantes dos últimos 30 anos, mas aposto que você nunca foi informado disso.
Língua portuguesa – Abram aspas pro Leminski: “Vocês já imaginaram a desgraça que é escrever em português? Sometimes, I wonder. Quem é que sabe português neste planeta, fora Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau? (…) Quando Shakespeare, no século XVII, em inglês, escreveu as suas peças, a Inglaterra estava num processo de ascensão acelerado de grande potência mundial”. Opa, quer dizer que existem chances de a maldição ir pras cucuias? Para mais, leiam o formidável raciocínio do poeta curitibano em seu ensaio de Os Sentidos da Paixão (1987).
Maura – Maura Lopes Cançado, a infeliz autora de Hospício É Deus (1965) e O Sofredor do Ver (1968), perfaz o tipo clássico de maldito, neste caso com o acréscimo de ter nascido mulher (o que pode pesar na descalibrada balança do destino). Internada num hospício por desejo próprio, assassinou outra paciente. Nasceu em uma família rica de Minas Gerais. Foi anunciada como escritora revelação pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil em 1958. Depois, quando foi libertada em 1970, ficou cega. Pertence à tradição maldita manicomial de Lima Barreto.
N – A letra N parece ser a letra mais amaldiçoada deste Amaldicionário, pois matutei e matutei e não lembrei de nenhum maldito começado com N. Ouvi alguém aí dizer Narcelo Nirisola? Vale maldição autoatribuída?
Oswald – Oswald de Andrade, claro que sim. Ou vai me dizer que na escola, apesar de ter sido obrigado e tal, você chegou a ler Serafim Ponte Grande ou João Miramar? Se leu, você é dos meus. E se não leu, leia agora. São livros divertíssimos que não merecem — ao contrário de todo o lixo modernista que “ficou”, como dizem, apesar de o verbo “ficar” para mim ter outra conotação — entrar pelo cânone.
Oralidade – Parte crucial da maldição literária brasileira é essa compulsão invencível que obriga os brasileiros a falar e falar e falar e falar (e, de vez em quando, muito raramente mesmo, a ouvir), mas nunca, de jeito nenhum, irremediavelmente nunca, a ler.
Paranóia – O primeiro livro de Roberto Piva é tão poderoso que quase o desobrigou de escrever seus livros seguintes, afinal escritos, vá lá, mas sem o mesmo impacto imagético e verbal da estreia. Depois dessa visão chapuletada da cidade de SP (de certo modo uma alucinação poética na qual Piva anteviu a necrópole futura), tudo em sua obra perdeu em intensidade (exceto pela putaria hipergay de Coxas e alguns poemas isolados), até minguar na chatice ecomilitante dos últimos dias.
Policial – Uma literatura onde a presença da ficção de gênero (devemos também incluir a Ficção Científica nessa lista de ausentes) é tão inócua só pode ser amaldiçoada.
Tupi Continued…
(coluna do autor no blog da Companhia das Letras, http://www.blogdacompanhia.com.br/category/colunistas/joca-reiners-terron/)
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