sábado, 16 de abril de 2011

Amaldicionário da Literatura Brasileira (parte I de III)

má companhia Por Joca Reiners Terron

Marcando o lançamento do selo Má Companhia, eis um dicionário deveras idiossincrático acerca da literatura maldita brasileira em três capítulos. Ó raios, que maldição!

Agrippino – José Agrippino de Paula representa a quintessência da maldição literária brasileira. Teve grana, amou uma das mulheres mais bonitas de seu tempo, depois pirou, empobreceu e acabou morrendo sozinho. Isso tudo apesar de ter meio que inventado o Tropicalismo com Panamérica, romance pop de 1967 (ou seja, publicado na hora certa) que poderia ter rodado mundo e determinado seu lugar no futuro. Também publicou Lugar público (1965), romance tão raro que consegue traduzir literariamente o caos urbano da cidade de São Paulo com técnicas do nouveau roman. Nada disso deu certo, e seus livros continuam na vala lamacenta destinada aos autores cult.

Borges – E o que Jorge Luis Borges faz num amaldicionário de literatura brasileira? Bom, a obra do grande argentino não fez sombra apenas em seus compatriotas, estendendo-se malignamente pro lado de cá e deixando marcas (complexo de inferioridade extremo) em parte significativa da produção literária brasileira dos anos 70 e 80. É a maldição do tango que contaminou o samba com arritmia. (Gabriel García Márquez causou semelhante epigonismo agudo, sobre o qual comentei aqui).

Brasil – É a razão de ser de toda a maldição literária brasileira. Um lugar lotado de mulher gostosa, ensolarado, com carne de vaca relativamente barata e praias (todavia, coliformes fecais e termotolerantes) não poderia gerar boa literatura. E não existe maldição superior a essa. Somando-se ao cálculo a rede de dormir e a feijoada, então, e pronto: ninguém mais faz porra nenhuma. A poeta Elizabeth Bishop deu a deixa ao criticar Manuel Bandeira por escrever e se deixar fotografar deitado na rede, afirmando que nenhuma literatura digna de nota sairia de posição tão relaxada. Quem discordaria dela?

Brevidade – Augusto Monterroso afirmou que “o bom, se breve, duas vezes bom”. Mais problemático é identificar o que pode ser bom numa vasta produção obcecada pela brevidade e por sua contrapartida literária, o conto, ou pior, pela sua versão autoindulgente, o microconto, essa praga que amaldiçoa a literatura brasileira com rapidinhas e rasteiras anedotas de salão.

Campos – de Carvalho, não os Irmãos Campos (que, vá lá, já tiveram fase mais abençoada). O mineiro de Uberaba, esse sim, bebeu e se empanturrou de surrealismo e de literatura francesa. Conta da esbórnia: tornou-se dono de obra verdadeiramente maldita em âmbito nacional. Dúvida: ele merece isso? É claro que não: o autor de A lua vem da Ásia, tão cheio de graça, merece ser lido por multidões. Jorge Amado, que comprava seus livros às mancheias para presentear os amigos, sabia muito bem disso.

Catatau – Brincadeira fascinante com a linguagem realizada por um dos poetas mais populares dos últimos trinta anos, o romance de Leminski nunca passeou por aí como deveria ter passeado. Nisso, ficou restrito ao gueto dos leitores de poesia; ou pior, restrito ao gueto dos leitores dos livros de prosa escritos por poetas, que é habitado por um ou dois poetas que nem ao menos se olham a não ser se for pra se estapearem. Tristeza de maldição, essa.

Décio – Décio Pignatari sempre foi o mala-mor entre os concretistas, mas também o dono da melhor prosa (tá, vamos descontar as Galáxias do Haroldão). Seus textos críticos eram plenos de verve e rebolado sintático. Seus livros de ficção, entretanto, (provavelmente devido à porra-louquice profunda de forma e de conteúdo, exceto talvez pelo romance Panteros) caíram no esquecimento sem nunca terem sido lembrados.

Experimental – William S. Burroughs afirmou certa vez que se algo era chamado de experimental só podia ser sinal de que a “experiência não dera certo”. De fato, tachar um livro de experimental é destiná-lo ao limbo no qual se encontram laboratórios explodidos e cientistas chamuscados, além de não fazer muito sentido numa época em que as conquistas da literatura pós-moderna estão incorporadas ao mainstream. Não, é claro, que os críticos se importem com isso.

Estilo – Grande maldição da literatura em língua portuguesa, praia pro tatibitate bacharelês se esparramar rotundamente, o estilo pode ser catástrofe maior se for confundido com escrever “difícil” (normalmente uma escrita romântica e pernóstica repleta de lirismo). Parte considerável da produção literária brasileira sofre dessa maldição que une idéias rasas à prosa complicada. Nesse aspecto a culpa é toda de Guimarães Rosa.

Ficção Científica – Uma literatura onde a presença da ficção de gênero (devemos também incluir o Policial nessa lista de ausentes) é tão inócua só pode ser amaldiçoada.

Fraga – Fraga, Antônio, anarquista da malandragem, antecipador de João Antonio e suas artes de chutar tampinhas e perdigotar gírias, é que era maldito de verdade. Nunca assimilado, nunca lido, o autor de Desabrigo sabia enfiar o romantismo no saco junto do cavaquinho: “Ó lua cheia / cheia de graça / este teu bucho / tá repleto de cachaça”. Foi o primeiro (com Clarice e Rosa) a receber o epíteto de “post-moderno” por Oswald de Andrade, que afirmou: “O que há, não é post-modernismo e sim a nova literatura do Brasil”.

Tupi Continued…

(coluna do autor no blog da Companhia das Letras, http://www.blogdacompanhia.com.br/category/colunistas/joca-reiners-terron/)

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