domingo, 10 de abril de 2011

Crônica do José Castello

Kafka e a estratégia da solidão

             Em abril de 1916, Franz Kafka viajou a trabalho para Marienbad, o famoso balneário da República Checa. Acompanhou-o a irmã favorita, Ottla, cuja presença, apesar dos fortes laços que os uniam, ou graças a eles, era uma garantia de solidão. Kafka apreciou a cidade e decidiu retornar, para uma temporada de férias, ao lado de Felice _ uma das três mulheres com quem esboçou uma paixão. Tinham sido noivos, a relação se rompera, mas um vínculo insistente permanecia. Agarrados a ele, como se atravessassem um abismo sobre uma frágil corda, os dois se encontraram em Marienbad.
             Hospedaram-se em quartos contíguos, porta com porta, chaveadas com prudência de ambos os lados. Um muro, muito mais alto que o desejo, os separa. Na manhã seguinte, Kafka anota em seu diário: "Noite infeliz. A impossibilidade de viver com F. a insuportabilidade da convivência com alguém. Não lamento isso, lamento a impossibilidade de ficar sozinho". Não sofre porque não consegue amar, ou porque Felice não corresponda a seu amor. Sofre porque insiste em algo (o amor) que só atrapalha a literatura. Ela, sim, exige fidelidade absoluta e não suporta ser traída.
            Leio um minucioso relato desse célebre encontro em "Franz Kafka & Praga", de Harald Salfellner (Tinta Negra). Amplamente ilustrado, o livro traz uma foto da famosa Waldquelle, a fonte da floresta, tomada por volta do ano de 1900. De muito longe, a figura de um casal se esboça, duas sombras massacradas pela construção monumental. Podiam ser Franz e Felice. Não são. O modo como o mundo os cerceia e quase anula, no entanto, é o mesmo.
             Muito se fala da incapacidade de Kafka para o amor, cuja prova estaria em suas tentativas fracassadas de se aproximar das mulheres. A anotação no diário atesta, me parece, que não foi bem assim. Não foram os amores que falharam; tampouco as mulheres. Kafka não era incapaz do amor e viveu, várias vezes, a experiência do amor correspondido. Era, sim, incapaz de sustentar seu desejo de solidão e usava as mulheres como álibi para dele fugir. Os amores apenas esboçados foram tampões, muralhas, com que se protegeu de si. Temia a si mesmo, e não às mulheres que amou, ou tentou amar.
           Até que desistiu de insistir em um caminho que _ ele pensava _ não o levaria a nada. Sua literatura está aí, como prova irrefutável, talvez, do acerto dessa decisão. Pode-se pensar: mesmo que tivesse se casado, ainda assim teria escrito. O fato é que preferiu ficar só, e foi sozinho que escreveu. Não foi uma escolha fácil. Por muito tempo, Franz engana a si mesmo. Ainda na estação termal, ele escreve à mãe: "Felice e eu nos encontramos, como de costume, em Marienbad e descobrimos que tratamos a questão de forma errada há alguns anos". Chegara, ele se ilude, ao momento de se corrigir e de acertar. Escrevendo ao amigo e confidente Max Brod, contudo, é mais verdadeiro: "No fundo eu nunca fui íntimo de uma mulher". Ainda se esforça em acreditar: "Mas agora eu vi o olhar da confiança de uma mulher e não pude me fechar".
           Não é que Kafka não amasse as mulheres, a vida em família, os próprios amigos. Não é que a solidão não lhe doesse, e que as companhias não lhe faltassem. Acontece que todos esses vínculos afetivos, de alguma forma, lhe roubavam o tempo para escrever. Desde cedo, viu a literatura como um destino exclusivo ou _ repetindo Tchekov para quem a medicina era a esposa e a literatura a amante _, como uma amante muito ciumenta. Nascera para escrever, e mais nada. Tudo o mais era traição, não aos outros, mas a si.
        Felice retorna a Berlim, onde vive, mas Kafka permanece por mais algum tempo em Mariembad. Está, enfim, em silêncio _ e o silêncio é condição fundamental da escrita. O destino, porém, ergue pequenas armadilhas em seu caminho. Um problema burocrático obriga-o a se mudar para o quarto antes ocupado por Felice. Parece a chance de um novo reencontro _ ainda que na ausência. Mas não: uma vez instalado na cama em que Felice dormiu, sua mente voa para outro lugar. "Aqui quase faz o silêncio que eu quero: a luz da noite arde na mesinha da sacada, todas as outras sacadas estão vazias devio ao frio, só vem um murmúrio uniforme da Kaiserstrake que não me incomoda".
            O destino o empurra para Felice, ou para a literatura? A dúvida o massacrou. Talvez o erro de Kafka tenha sido acreditar que precisava escolher: ou a mulher, ou a escrita. Talvez não se julgasse capaz de suportar o ciúme. Talvez cultivasse o mito de que o coração se doa, sempre, por inteiro, ou se configura a traição. Passa 21 noites sozinho em Mariembad, visita a região, descansa e escreve. Está, enfim, em paz. Pergunto-me se a literatura, de fato, lhe basta. Seus dias se assemelham: toma café da manhã, caminha, vai à quitanda para comer frutas e leite azedo, escreve algumas linhas, dorme um pouco. Recolhe-se _ o que não significa dizer que não sofre. O que não significa dizer que a solidão não lhe pese, pois pesa. A literatura, porém, tem seu preço. O preço que Kafka deve pagar é alto.
           Viajou muitas vezes à Morávia, para visitar seu tio preferido, Siegfried Löwy, irmão de sua mãe. As temporadas com o tio, que é médico em Triesch, são descritas, ao contrário, com grande entusiasmo. Não está sozinho, mas está bem. Talvez porque o tio dele nada espere. Lógica masculina: um homem nada espera do outro. O que faz então? Anda de motocicleta, toma muitos banhos, deita-se (nu) na grama junto ao lago, joga bilhar, dá longas caminhadas, toma cerveja. Chega a fletar com uma moça (sem nome) que descreve, depois, como "aborrecidamente apaixonada". Passeia com outras duas, muito inteligentes, talvez demais, "que precisam manter os dentes cerrados para não se sentirem obrigadas a manifestar uma certeza ou um princípio". Chega a sonhar com uma delas, "com suas pernas curtas e grossas", mas persevera na solidão. O escritor é o guardião de um castelo.
         À solidão se agarra, "casa-se" com ela _ ou seja, consigo mesmo. Seu trajeto pela vida, até hoje, nos serve como síntese da figura do escritor. Mesmo acompanhado, mesmo amparado, mesmo casado e cheio de filhos, um escritor precisa estar só, porque arranca o melhor que tem não dos outros, por melhores que eles sejam, mas de si mesmo. Penso que Kafka é, antes de tudo, um modelo de coragem _ embora, em outra perspectiva, ele possa ser visto como um misantropo, ou um fujão. A misantropia esconde, quase sempre, alguma melancolia, e Kafka foi, de fato, um melancólico.
          Perseverou em sua solidão como um soldado em sua fortaleza _ o castelo a que ninguém tem acesso _ e dela arrancou suas ficções. Não é por outro motivo que, ainda hoje, a figura do escritor, se provoca admiração, provoca também muitas suspeitas. O que faz esse sujeito fechado em si mesmo? O que tanto ele escreve? E para que, ou para quem, escreve? Perguntas que o próprio escritor não sabe responder. Não: a literatura não expressa um desejo de se comunicar. O leitor, quando entra em um livro, é um ladrão. A literatura é, ao contrário, o desejo de se isolar. Hoje, quando os escritores são convocados a falar sobre tudo, prevalece a idéia de que o escritor nasceu para chegar ao outro. A maior parte deles não chega, porém, sequer a si mesmo. Só um deles _ pois a literatura é uma viagem solitária e inegociável _ chegou a ser Franz Kafka.

Pescada em: http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/posts/2011/04/08/kafka-a-estrategia-da-solidao-373737.asp
     
                                             

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