Carta a Adolfo Rocha - Jun. 1930
Meu prezado camarada:
Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por temperamento, instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol — ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua — o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.
Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido — mas era a minha opinião, que não a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela extensão da sensação.
Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias.”
É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente .
Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de ......
Fernando Pessoa
6-1930
IN: Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 69.
domingo, 30 de janeiro de 2011
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Ame Agaru Kurosawa
Em português "Depois da Chuva". Baseado no último roteiro feito pelo mestre Kurosawa, o filme, dirigido pelo seu principal discípulo que o acompanhou por 28 anos - Takashi Koizumi, conta a história do samurai sem mestre (um ronin), que perambula, junto com a mulher em busca de emprego. O samurai Misawa, além da serenidade, é dono de um coração que o leva sempre a se compadecer pelos mais pobres e necessitados, mesmo q isso o faça lutar por dinheiro para comprar comida. E lutar por dinheiro é a suprema desonra para um samurai. Daí se vê o espírito livre do personagem q prefere seguir sempre seu caminho, pagando o preço de não encontrar seu lugar no mundo.
Outro filme épico da série sobre samurais, Ame Agaru consegue ser leve e delicado. Cenas de pássaros, do rio em cheia, da floresta, mostram um Japão com valores muito anteriores ao processo de ocidentalização.
Frase: "Dizem q a espada de um guerreiro é o seu espírito. Essa tem um fio sereno como a brisa de primavera."
Outro filme épico da série sobre samurais, Ame Agaru consegue ser leve e delicado. Cenas de pássaros, do rio em cheia, da floresta, mostram um Japão com valores muito anteriores ao processo de ocidentalização.
Frase: "Dizem q a espada de um guerreiro é o seu espírito. Essa tem um fio sereno como a brisa de primavera."
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
Um leitor comum
José Castello - 25.01.2011
Releio _ sem parar _ um pequeno ensaio de Virginia Woolf que me ajuda a entender meu caminho pessoal na escrita. Sem parar, sem parar, como uma obsessão benigna, as palavras de Virginia me perseguem e me desenham. Elas me ajudam a formular, com mais firmeza, uma resposta que sempre dou quando me perguntam, afinal, quem sou eu. "Sou um leitor comum", tenho insistido em responder, e agora Virginia Woolf me encoraja a repetir. O ensaio, é claro, se chama "O leitor comum", tem só 33 linhas e abre uma bela reunião de dispersos de Virginia Woolf lançada pela Editora Graphia, em tradução e seleção de Luciana Viégasno, ano de 2007. O livro se chama, ele também, O leitor comum, definindo uma posição que Virginia me empresta, quase 70 anos após sua morte, para me ajudar a fixar minha própria posição. Vivemos na época dos crachás, das senhas eletrônicas, do Currículo Lattes e dos cartões de visita. A cada passo, somos obrigados a responder à pergunta constrangedora: "Quem é você?" Se você esqueceu o crachá, ou não recorda a senha, está frito. Sem um currículo, ou um cartão, você não é ninguém.
Não acredito que ninguém possa fornecer, com sinceridade, uma resposta segura a essa pergunta, até porque somos várias coisas e várias pessoas ao mesmo tempo, a ideia da identidade é só uma ilusão que nos ajuda a viver. Mas já que insistem em perguntar, se sou crítico literário, se sou professor, se sou um cronista, ou sou um especialista, enfim, como afinal me defino, imito Virginia e respondo: "Sou um leitor comum". E confesso que me sinto bastante bem.
Distingue Virginia o leitor comum de outros leitores mais aparelhados, ou "autorizados", como os críticos de escola, os professores de carreira e os magistrados _ por quem, não preciso dizer, tenho grande respeito. Mas se ele é "comum", isto é, trivial, ordinário, habitual, ao se definir por um adjetivo que, em vez de delimitar e separar, expande e mistura, como saber quem é esse leitor? Como saber que sou eu? Virginia o (me) retrata: "Lê para seu próprio prazer muito mais do que para repartir conhecimento ou corrigir opiniões alheias". A ênfase está em uma palavra: prazer. Palavra vaga, mas forte, que é mais um corredor pelo qual vários sentimentos e significados escorrem.
Meu médico me disse, recentemente, que preciso descansar mais e trabalhar menos. Argumentou: "Seu problema não é que seu trabalho lhe pese, mas que você o ama. Como gosta muito do que faz, você acredita que tem sempre mais forças para gastar, quando na verdade não tem". Está aí: o prazer, como muito bem alerta meu médico, tem também seu lado doentio. Doença comum, mas atroz, ela atinge todos os que amam a leitura. "Acima de tudo, ele é guiado pelo instinto de criar para si mesmo alguma espécie de plenitude", prossegue Virginia, e aqui fala da fome estranha que a literatura é capaz de despertar, fome que se mata não com alimentos, mas com a propagação da própria fome. Fome de sentir fome, isto é, de se sentir vivo.
Plenitude: o leitor comum lê não só porque se apaixonou pelo que lê, mas lê porque o texto o deixa pleno. Também o escritor se pauta por esse desejo de completude. É um solitário, que escreve como se a permanência do mundo dependesse exclusivamente de sua transcrição contínua _ e aqui, imitando Virginia, lembro de Montaigne, em cujos ensaios, cinco séculos depois, continuamos a ver nossa face refletida. O estilo de Montaigne é lento, fragmentário, ondulante, "confuso". Ele se define, Virginia vem em meu socorro, pela "desordem, polimorfia, imperfeição".
Nada do rigor exigido das dissertações acadêmicas. Nada da frieza que se espera dos laudos científicos, ou das argumentações jurídicas. Montaigne partia sempre de sua (nossa) interminável "dificuldade de expressão". Partia da ideia de que a palavra é insuficiente, e por isso é preciso tentar de novo, e de novo, e ainda uma vez. Por isso também, leitores comuns apaixonados, não paramos de ler. (E aqui já estou em outro ensaio, "Montaigne", que se inicia na página 23 do mesmo livro de Virginia.)
Sabia Montaigne _ estranho, mas precioso exemplo do leitor comum _ que estamos sempre em descompasso com a vida exterior, que ela nos foge, que ela não se submete à ditadura da linguagem, porque a linguagem é sempre espessa, arbitrária e dogmática, e a vida não suporta freios, nem padrões. Somos todos parecidos, muito parecidos, com o Coelho Branco que corre apressado pelas páginas do Alice, de Lewis Carroll, e que, com um relógio na mão, não se cansa de repetir: "É tarde, é tarde, é tarde". Sim, a linguagem nos salva, mas esse é um salvamento imperfeito, pois ela está em contínuo descompasso com o tempo e com o real. Tenta, esforça-se, mas não consegue. Foi a consciência desse "não consegue" que fez de Montaigne um gênio.
Montaigne, que odiava a convenção e a cerimônia, sabia que esses são dois defeitos fundamentais da língua. Basta abrir um dicionário e logo encontramos um número limitado e duro de sinônimos, de significados, de aproximações, e só porque eles são poucos e limitados a lingua sobrevive e podemos usá-la para nos aproximar e nos comunicar. Contra a convenção e a cerimônia _ isto é, a ordem e os protocolos, a forma empedrada dos dicionários _ Montaigne propunha o recolhimento e a contemplação. Volto ao leitor comum: que dois estados melhor o definem?
Dizia Montaigne, ainda, que, se a liberdade interior é fundamental para o leitor, ela deve também ser vigiada. Defendia assim a criação de um "censor interno", o único juiz a que, de fato, devemos nos submeter: nós mesmos. Se o leitor comum se deixa guiar pelo prazer _ e, portanto, por impulsos, por paixões súbitas, pela imaginação fervente _, ele deve também impor alguma ordem a essa "cativante confusão" que carrega sempre dentro de si. Isso não significa que deva se submeter a padrões externos, regras oficiais, protocolos acadêmicos, ou normas de qualquer outra ordem. Não: o leitor comum (Montaigne como ideal) é livre não só porque se permite toda sorte de afeto e devaneio, mas porque os vigia de perto, zela por eles e os interroga. E, sobretudo, porque os ama.
O leitor comum lê mais por prazer do que por conhecimento. Guia-o o instinto de criar para si mesmo alguma forma íntima de plenitude _ o desejo de encontrar o obejto que lhe falta. A seu respeito, Virginia Woolf diz mais, sem poupá-lo (sem me poupar): "É impaciente e descuidado e superficial". Não porque aprecie o erro, mas porque sabe que a questão não é "não errar", mas sim "errar bem". Não porque despreze o real, mas porque sabe que o real é complexo e fugidio, não passa de um bichinho assustado que se esconde nas mais estreitas frestas e que se transfigura nas imagens mais traiçoeiras.
Como se pauta pelo prazer, e não pelo protocolo, o leitor comum lê mais desarmado, e por isso o texto algumas vezes lhe rasga a alma e o derruba. Sim, já adoeci de muitos livros. Lembro a primeira vez que, aos 19 anos, li A paixão segundo G.H., de CLarice Lispector e a apatia asustadora que a sucedeu. Antes disso: recordo a febre que, no meio da adolescência, me provocaram os poemas de Bandeira e de Vinicius. Antes ainda: em torno dos dez ou onze anos, o espanto produzido em mim pela leitura de Robinson Crusoe e também de trechos das Mil e uma noites. Toda leitura causa um impacto e o leitor comum, porque antes de abrir o livro despôs suas armas e abriu o coração, sem defesas, a ele sucumbe.
A impaciência, o descuido, a atenção superficial não são defeitos, mas efeitos da busca obsessiva do prazer. O leitor comum e seu livro se parecem com dois corpos que fazem amor: apressados, se agarram com fúria; descuidados, não se importam em impor um ao outro pequenas feridas que serão, elas tambem, fontes secundárias de prazer; como bailarinos, deslizam pela superfície do corpo amado, em silêncio e abnegação; não há espaço para perguntas, o diálogo não cabe, as palavras revelam sua incrível pobreza. Leitores comuns são amantes que, em sofreguidão, se agarram a um livro.
Sempre aprendo muito lendo Virgina Woolf _ e isso talvez seja mais um efeito de minha condição de leitor comum. Nessa posição, também não me interesso pelas leituras autorizadas, as classificações sistemáticas e os raciocínios lógicos. Cânones, padrões, avaliações _ para que? Tudo isso se assemelha, sempre, ao escudo com que o cavaleiro se defende do dragão. Quando o leitor comum lê um livro, aquilo não é um estudo, ou uma pesquisa, mas uma experiência. Diz Virginia: "Basta de morte, é a vida que interessa".
sábado, 22 de janeiro de 2011
O mito de Fausto - o filme de Murnau
Fausto
(Faust - Eine Deutsche Volkssage, 1926)
• Direção: F.W. Murnau
• Roteiro: Johann Wolfgang Goethe (peça teatral), Gerhart Hauptmann (cartelas), Hans Kyser (roteiro e cartelas), Christopher Marlowe (peça teatral)
• Gênero: Drama/Fantasia/Terror
• Origem: Alemanha
• Duração: 116 minutos
• Tipo: Longa-metragem
Sinopse: Baseado na famosa peça de Goethe, temos Fausto, um velho alquimista que vê sua cidade ser assolada pela peste negra. Vendo tanta morte, começa a pensar sobre sua própria finitude. Ele então evoca Mephisto, e, inicialmente, lhe pede o poder para curar. Mas quando seu pacto é descoberto, a cidade o expulsa e ele, então, pede a Mephisto a juventude de volta. O demônio a garante, em troca da alma de Fausto. Tudo parecia perfeito, até este se apaixonar por uma jovem italiana. Marco absoluto do cinema expressionista alemão, é o último filme de Murnau no país.
(Faust - Eine Deutsche Volkssage, 1926)
• Direção: F.W. Murnau
• Roteiro: Johann Wolfgang Goethe (peça teatral), Gerhart Hauptmann (cartelas), Hans Kyser (roteiro e cartelas), Christopher Marlowe (peça teatral)
• Gênero: Drama/Fantasia/Terror
• Origem: Alemanha
• Duração: 116 minutos
• Tipo: Longa-metragem
Sinopse: Baseado na famosa peça de Goethe, temos Fausto, um velho alquimista que vê sua cidade ser assolada pela peste negra. Vendo tanta morte, começa a pensar sobre sua própria finitude. Ele então evoca Mephisto, e, inicialmente, lhe pede o poder para curar. Mas quando seu pacto é descoberto, a cidade o expulsa e ele, então, pede a Mephisto a juventude de volta. O demônio a garante, em troca da alma de Fausto. Tudo parecia perfeito, até este se apaixonar por uma jovem italiana. Marco absoluto do cinema expressionista alemão, é o último filme de Murnau no país.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Clarice na praia
Na praia, com longos intervalos para observar o horizonte, o oceano e os pássaros, releio, mais uma vez, "Água viva", o mais afirmativo romance de Clarice Lispector. Nas margens do livro, anoto pequenas observações e pensamentos. A ideia de que a literatura não é uma "representação", mas uma "experiência" _ de onde retirei minha visão pessoal da literatura como uma "reportagem interior". A certeza de que o passado não interessa mais, já que em seu lugar emerge o poderoso instante, lugar em que as coisas apenas são, sem a necessidade de justificativas, de garantias, ou de certezas. A busca não da realidade, essa convenção que construímos para viver, mas do processo que a constitui _ como uma cozinheira que preferisse, a um refinado assado, a leitura de sua receita.
Clarice escrevia um passo à frente do mundo. Talvez um passo atrás, por que não? Escrevia nos bastidores _ como uma atriz que se recusasse a subir ao palco, preferindo desempenhar seu papel na solidão dos camarins. Escrevia, como ela mesma disse, não "para fora" _ como as pessoas que lavam, ou passam para fora _, mas "para dentro". Não trabalhava com a claridade, mas com a escuridão. Em "Água viva", com ênfase e coragem, ela resume: "A escuridão é meu caldo de cultura. A escuridão feérica".
Estranho voltar a essas ideias em pleno sol de Copacabana, onde tudo se mostra e tudo se expõe. Onde tudo parece feito de luz e a verdade se torna escandalosa. Como um médico que se fecha para escutar um coração, Clarice ouvia, em silêncio, o sutil pulsar da vida _ mas como se faz isso na zoeira de nossos dias? Como lidar com vestígios e ruídos em um mundo de eventos, luzes e poses?
Falava, sem medo, da "potência da incompreensão", mas como defender essa vida que se liberta do entendimento em um mundo que, a todo momento, obsessivamente, se auto-explica? Acreditava Clarice que o escritor lida com elementos anteriores ao pensamento, e portanto indiferentes à ordem da explicação. Que ele é um jardineiro que, em vez de regar flores, rega sementes _ o que, visto de longe, parece um chão vazio. Lida com elementos muito frágeis que, se desvelados, não resistem à dura prova da realidade. A realidade é pragmágica. A realidade exige sentimentos claros e espontâneos. A realidade é gulosa.
Clarice desprezava, com horror, o culto da memória _ e, em "Água viva", diz que procura ver estritamente no momento em que vê, e não fora dele. Com isso, recusava a memória explicativa, que distorce e engorda o presente para discipliná-lo e organizá-lo.
Buscava uma escrita que se parecesse com a delicadeza da música instrumental, que não representa outra coisa, mas apenas é. Amava as coisas como elas são: os cachorros com seu silêncio, as árvores com sua obsessão pelo alto, o corpo com suas baixezas. Via, por isso, a literatura como um grito, não de desespero, mas um chamado à vida. "Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita", ela escreve. Grito que, no tumulto moderno, se esfarela.
Não pensava duas vezes ao afirmar que "o verdadeiro pensamento parece sem autor". Aos escritores da moda, com suas griffes, suas agendas e suas poses; aos escritores "sérios", com suas declarações e seu estilo; aos escritores que sabem o que fazem, com sua cegueira disfarçada de luz _ Clarice preferia afirmar o desprezo pela autoria. Quando quase todos escrevem para aparecer, Clarice escrevia para desaparecer. Agia como um mágico que, em vez de puxar um coelho de uma cartola, nela o afoga para sempre.
Clarice teve o poder de escrever coisas que lemos como nossas, e não como dela. Nâo lhe interessava escrever "para o leitor", mas "ser" esse leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias. As palavras, de fato, lhe eram alheias.
Escrevia sem ilusões e sem fantasias _ sem ideais. O desprezo enfático pelos ideais: este parece ser, ainda hoje, seu crime mais grave. Esperar? Sonhar? Desejar? Aspirar? Clarice preferia ser. Talvez por isso não conseguisse parar de escrever: se parasse, a vida lhe escaparia
Clarice escrevia um passo à frente do mundo. Talvez um passo atrás, por que não? Escrevia nos bastidores _ como uma atriz que se recusasse a subir ao palco, preferindo desempenhar seu papel na solidão dos camarins. Escrevia, como ela mesma disse, não "para fora" _ como as pessoas que lavam, ou passam para fora _, mas "para dentro". Não trabalhava com a claridade, mas com a escuridão. Em "Água viva", com ênfase e coragem, ela resume: "A escuridão é meu caldo de cultura. A escuridão feérica".
Estranho voltar a essas ideias em pleno sol de Copacabana, onde tudo se mostra e tudo se expõe. Onde tudo parece feito de luz e a verdade se torna escandalosa. Como um médico que se fecha para escutar um coração, Clarice ouvia, em silêncio, o sutil pulsar da vida _ mas como se faz isso na zoeira de nossos dias? Como lidar com vestígios e ruídos em um mundo de eventos, luzes e poses?
Falava, sem medo, da "potência da incompreensão", mas como defender essa vida que se liberta do entendimento em um mundo que, a todo momento, obsessivamente, se auto-explica? Acreditava Clarice que o escritor lida com elementos anteriores ao pensamento, e portanto indiferentes à ordem da explicação. Que ele é um jardineiro que, em vez de regar flores, rega sementes _ o que, visto de longe, parece um chão vazio. Lida com elementos muito frágeis que, se desvelados, não resistem à dura prova da realidade. A realidade é pragmágica. A realidade exige sentimentos claros e espontâneos. A realidade é gulosa.
Clarice desprezava, com horror, o culto da memória _ e, em "Água viva", diz que procura ver estritamente no momento em que vê, e não fora dele. Com isso, recusava a memória explicativa, que distorce e engorda o presente para discipliná-lo e organizá-lo.
Buscava uma escrita que se parecesse com a delicadeza da música instrumental, que não representa outra coisa, mas apenas é. Amava as coisas como elas são: os cachorros com seu silêncio, as árvores com sua obsessão pelo alto, o corpo com suas baixezas. Via, por isso, a literatura como um grito, não de desespero, mas um chamado à vida. "Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita", ela escreve. Grito que, no tumulto moderno, se esfarela.
Não pensava duas vezes ao afirmar que "o verdadeiro pensamento parece sem autor". Aos escritores da moda, com suas griffes, suas agendas e suas poses; aos escritores "sérios", com suas declarações e seu estilo; aos escritores que sabem o que fazem, com sua cegueira disfarçada de luz _ Clarice preferia afirmar o desprezo pela autoria. Quando quase todos escrevem para aparecer, Clarice escrevia para desaparecer. Agia como um mágico que, em vez de puxar um coelho de uma cartola, nela o afoga para sempre.
Clarice teve o poder de escrever coisas que lemos como nossas, e não como dela. Nâo lhe interessava escrever "para o leitor", mas "ser" esse leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias. As palavras, de fato, lhe eram alheias.
Escrevia sem ilusões e sem fantasias _ sem ideais. O desprezo enfático pelos ideais: este parece ser, ainda hoje, seu crime mais grave. Esperar? Sonhar? Desejar? Aspirar? Clarice preferia ser. Talvez por isso não conseguisse parar de escrever: se parasse, a vida lhe escaparia
José Castello
Dançando com o vazio
A imagem dessa página é “Leap into the Void” (nome completo da obra: “Salto no vazio: um homem no espaço! O pintor do espaço se joga no vazio!”), fotomontagem de 1960 pensada – e protagonizada - por Yves Klein.
Antes de saltar ao vazio, o artista francês compôs uma sinfonia monotônica, pintou telas monocromáticas (com uma tonalidade de azul criada por ele, o epifânico “International Klein Blue”), soltou 1001 balões (azuis-klein) pelo céu de Saint-Germain-des-Prés, no que chamou de “escultura aerostática”, e vendeu espaços vazios por ouro – que depois jogou nas águas do Sena.
Sem falar das modelos nuas (“pincéis vivos”) se besuntando de tinta azul-klein (“o invisível tornando-se visível”) sobre telas em branco ao som da sinfonia monótona – em 1949!
Mais do que o azul que o imortalizou, a imagem que resume melhor sua meteórica carreira (Klein morre de infarto aos 32) é a impressa ao lado. O seu mergulho de fé no vazio – no imaterial, no efêmero – anuncia nossa contemporaneidade com 50 anos de antecedência. Além de antecipar a instalação e a performance como formas de arte, Klein nos antecipou o vazio.
“A era do espaço” anunciada por Klein, um faixa-preta de judô versado em Zen-budismo e na cosmogonia Rosa-cruz, prevê um mundo onde espíritos sem fronteiras existem livres de forma, objetos levitam e seres humanos viajam livres do seu próprio corpo. Ele preconiza a virtualidade total.
Penso em Klein, homem fora do tempo, e na sua estética da desaparição não porque eu mesmo faça planos diários de sumir como um personagem do Vila-Matas, mas porque passei a tarde conectado ao Facebook, recebendo sugestões de amigos que desconheço sobre o que escrever ou não.
(Para os neófitos: Facebook é uma Ilha de Caras Virtual, onde as celebridades em potencial que povoam nosso planeta organizam sua vida social, estampam fotografias e fazem a fila para seus futuros parceiros sexuais e/ou afetivos.)
O desfile de personagens-de-si-mesmos em sites como o Facebook, o ramerrame monossilábico do Twitter ou a interação visual explícita do Chatroulette confirmam Klein: espíritos sem fronteiras, seres humanos viajando livres do corpo, objetos levitando etc. Como diria Klein: “vida longa ao imaterial!”
O vazio está aí - mais do que nunca esteve. Só nos resta aprender a dançar com ele.
João Paulo Cuenca
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
O mundo do papel
Não sei de onde herdei esse gosto. Onde e quando na minha primeira infância se deu esse encontro que marcou definitivamente minha vida. Talvez tenha se dado nos antigos armazéns de meu pai, no seu trabalho de escrituração de mercadorias e vendas... Outro dia, remexendo as coisas lá na minha mãe, achei cadernos antigos em que ele escriturava o movimento do comércio.
Apenas sei que o cheiro e a textura têm pra mim um aspecto quase sencual. Adoro cheirar livros novos, adoro dobrar, recortar, amassar. Adoooro papel.
No projeto da minha casa, pedi ao arquiteto q o espaço destinado à biblioteca também servisse como ateliê. Quero prodzir papel, quero escrever sobre ele, jogar tinta, misturar essências na pasta, criar texturas. Eu adoooro papel e seu mundo, ainda mais agora que, com computador e impressoras avançadas, é praticamente possível ter uma gráfica em casa.
Papiros, tabuletas de argila, pergaminhos, tipos móveis, teclas.... A minha Olivetti verde, presente do meu pai quando terminei o segundo grau e passei no vestibular. E vinte e três anos depois seu brilho no olhar ao saber do meu livro... Como, às vezes, a gente leva tempo pra entender as coisas, pra perceber o nosso verdadeiro caminho!
É decididamente, o amor pelo mundo do papel se não é genético, é edipiano... De qualquer forma, é amor, paixão violenta e eterna.
Fernanda Meireles, 12.01.2011, JF com manhã chuvosa (pra variar).
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
Casa Fernando Pessoa programa ano de Portugal no Brasil 2012
Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011
A divulgação da literatura portuguesa com um ciclo de conferências e debates de autores em diferentes cidades brasileiras; a realização de um filme de curta duração em que se apresentam dez novos escritores portugueses e a criação de uma colecção de obras de referência da Literatura Portuguesa para ser distribuída no Brasil são algumas das iniciativas que já estão a ser pensadas para celebrar, em 2012, o ano Portugal-Brasil e Brasil-Portugal. Considerando que Fernando Pessoa é o maior embaixador da literatura portuguesa, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas e o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, assinaram ontem, em Lisboa, um protocolo entre o Ministério da Cultura e a Câmara Municipal. Numa primeira fase é atribuída pela tutela à Casa Fernando Pessoa a verba de 55 mil euros, para que, através da sua directora Inês Pedrosa, seja delineado e executado um programa de iniciativas da celebração de 2012 como o ano de Portugal no Brasil. “A Casa Fernando Pessoa é o melhor parceiro que nós temos para desenvolver esta política de divulgação da literatura e da língua portuguesa no Brasil”, disse a ministra.
In: http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
A divulgação da literatura portuguesa com um ciclo de conferências e debates de autores em diferentes cidades brasileiras; a realização de um filme de curta duração em que se apresentam dez novos escritores portugueses e a criação de uma colecção de obras de referência da Literatura Portuguesa para ser distribuída no Brasil são algumas das iniciativas que já estão a ser pensadas para celebrar, em 2012, o ano Portugal-Brasil e Brasil-Portugal. Considerando que Fernando Pessoa é o maior embaixador da literatura portuguesa, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas e o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, assinaram ontem, em Lisboa, um protocolo entre o Ministério da Cultura e a Câmara Municipal. Numa primeira fase é atribuída pela tutela à Casa Fernando Pessoa a verba de 55 mil euros, para que, através da sua directora Inês Pedrosa, seja delineado e executado um programa de iniciativas da celebração de 2012 como o ano de Portugal no Brasil. “A Casa Fernando Pessoa é o melhor parceiro que nós temos para desenvolver esta política de divulgação da literatura e da língua portuguesa no Brasil”, disse a ministra.
In: http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
Epístolas pessoanas
[Carta a Ophélia Queiroz - 29 Set. 1929]
Ophelinha pequena:
Como não quero que diga que eu não lhe escrevi, por efectivamente não ter escrito, estou escrevendo. Não será uma linha, como prometi, mas não serão muitas. Estou doente, principalmente por causa da série de preocupações e arrelias que tive ontem. Se não quer acreditar que estou doente, evidentemente não acreditará. Mas peço o favor de me não dizer que não acredita. Bem me basta estar doente; não é preciso ainda vir duvidar disso, ou pedir-me contas da minha saúde como se estivesse na minha vontade, ou eu tivesse obrigação de dar contas a alguém de qualquer coisa.
O que lhe disse de ir para Cascais (Cascais quer dizer um ponto qualquer fora de Lisboa, mas perto, e pode querer dizer Sintra ou Caxias) é rigorosamente verdade: verdade, pelo menos, quanto à intenção. Cheguei à idade em que se tem o pleno domínio das próprias qualidades, e a inteligência atingiu a força e a destreza que pode ter. É pois a ocasião de realizar a minha obra literária, completando umas coisas, agrupando outras, escrevendo outras que estão por escrever. Para realizar essa obra, preciso de sossego e um certo isolamento. Não posso, infelizmente, abandonar os escritórios onde trabalho (não posso, é claro, porque não tenho rendimentos), mas posso, reservando para o serviço desses escritórios dois dias da semana (quartas e sábados), ter de meus e para mim os cinco dias restantes. Aí tem a célebre história de Cascais.
Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto, a minha vida gira em torno da minha obra literária — boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário: há coisas, naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não venham. É preciso que todos, que lidam comigo, se convençam de que sou assim, e que exigir-me os sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha olhos azuis e cabelo louro. E estar a tratar-me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a minha afeição. É preferível tratar assim quem seja assim, e nesse caso é «dirigir-se a outra pessoa» ou qualquer frase parecida.
Gosto muito — mesmo muito — da Ophelinha. Aprecio muito — muitíssimo — a sua índole e o seu carácter. Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero organizar essa vida de pensamento e de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que nunca sequer pensarei em pensar em casar. Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um estorvo, claro que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro — e é um futuro próximo — o dirá.
Ora aí tem, e, por acaso é a verdade.
Adeus, Ophelinha. Durma e coma, e não perca gramas.
Seu muito dedicado,
Fernando
29/9/1929
Domingo
In: http://arquivopessoa.net/textos/3679
Ophelinha pequena:
Como não quero que diga que eu não lhe escrevi, por efectivamente não ter escrito, estou escrevendo. Não será uma linha, como prometi, mas não serão muitas. Estou doente, principalmente por causa da série de preocupações e arrelias que tive ontem. Se não quer acreditar que estou doente, evidentemente não acreditará. Mas peço o favor de me não dizer que não acredita. Bem me basta estar doente; não é preciso ainda vir duvidar disso, ou pedir-me contas da minha saúde como se estivesse na minha vontade, ou eu tivesse obrigação de dar contas a alguém de qualquer coisa.
O que lhe disse de ir para Cascais (Cascais quer dizer um ponto qualquer fora de Lisboa, mas perto, e pode querer dizer Sintra ou Caxias) é rigorosamente verdade: verdade, pelo menos, quanto à intenção. Cheguei à idade em que se tem o pleno domínio das próprias qualidades, e a inteligência atingiu a força e a destreza que pode ter. É pois a ocasião de realizar a minha obra literária, completando umas coisas, agrupando outras, escrevendo outras que estão por escrever. Para realizar essa obra, preciso de sossego e um certo isolamento. Não posso, infelizmente, abandonar os escritórios onde trabalho (não posso, é claro, porque não tenho rendimentos), mas posso, reservando para o serviço desses escritórios dois dias da semana (quartas e sábados), ter de meus e para mim os cinco dias restantes. Aí tem a célebre história de Cascais.
Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto, a minha vida gira em torno da minha obra literária — boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário: há coisas, naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não venham. É preciso que todos, que lidam comigo, se convençam de que sou assim, e que exigir-me os sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha olhos azuis e cabelo louro. E estar a tratar-me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a minha afeição. É preferível tratar assim quem seja assim, e nesse caso é «dirigir-se a outra pessoa» ou qualquer frase parecida.
Gosto muito — mesmo muito — da Ophelinha. Aprecio muito — muitíssimo — a sua índole e o seu carácter. Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero organizar essa vida de pensamento e de trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro está que nunca sequer pensarei em pensar em casar. Se a organizar em termos de ver que o casamento seria um estorvo, claro que não casarei. Mas é provável que assim não seja. O futuro — e é um futuro próximo — o dirá.
Ora aí tem, e, por acaso é a verdade.
Adeus, Ophelinha. Durma e coma, e não perca gramas.
Seu muito dedicado,
Fernando
29/9/1929
Domingo
In: http://arquivopessoa.net/textos/3679
Epístolas pessoanas
[Carta a Ophélia Queiroz - 29 Nov. 1920]
Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente — homens ou mulheres — escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando
Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente — homens ou mulheres — escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
Ma'at
Eu sou aquela que pune,
Aquela que te dá medo.
Que o teu coração seja mais leve
Que a pena q adorna minha fronte.
Esse é verdadeiramente o meu desejo,
mas é a tarefa principal
e mais difícil para qualquer humano.
Exige uma alquimia de si
que só alguns conseguem realizar.
Que tu seja um desses eleitos.
Fernanda Meireles, 06.01.2011
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
O vendedor de palavras
[Arrumando minhas revistas, achei essa crônica do Fábio Reynol que 'casa' muito bem com estas minhas 'visitas ao dicionário'.]
Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.
Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse.
— O que o senhor está vendendo?
— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos como diz a placa.
— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
— O senhor sabe o significado de histriônico?
— Não.
— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
— O senhor tem dicionário em casa?
— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
— O senhor estava indo à biblioteca?
— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real!
— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?
— O senhor conhece Nélida Piñon?
— Não.
— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
— E por que o senhor não vende livros?
— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
— Jactância.
— Pegar um livro velho...
— Alfarrábio.
— O senhor me interrompe!
— Profaço.
— Está me enrolando, não é?
— Tergiversando.
— Quanta lenga-lenga...
— Ambages.
— Ambages?
— Pode ser também evasivas.
— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
— Pusilânime.
— O senhor é engraçadinho, não?
— Finalmente chegamos: histriônico!
— Adeus.
— Ei! Vai embora sem pagar?
— Tome seus cinqüenta centavos.
— São três reais e cinqüenta.
— Como é?
— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
— Tem troco para cinco?
Fábio Reynol, freynol@gmail.com, http://diariodatribo.blogspot.com
Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.
Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse.
— O que o senhor está vendendo?
— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos como diz a placa.
— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
— O senhor sabe o significado de histriônico?
— Não.
— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
— O senhor tem dicionário em casa?
— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
— O senhor estava indo à biblioteca?
— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real!
— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?
— O senhor conhece Nélida Piñon?
— Não.
— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
— E por que o senhor não vende livros?
— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
— Jactância.
— Pegar um livro velho...
— Alfarrábio.
— O senhor me interrompe!
— Profaço.
— Está me enrolando, não é?
— Tergiversando.
— Quanta lenga-lenga...
— Ambages.
— Ambages?
— Pode ser também evasivas.
— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
— Pusilânime.
— O senhor é engraçadinho, não?
— Finalmente chegamos: histriônico!
— Adeus.
— Ei! Vai embora sem pagar?
— Tome seus cinqüenta centavos.
— São três reais e cinqüenta.
— Como é?
— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
— Tem troco para cinco?
Fábio Reynol, freynol@gmail.com, http://diariodatribo.blogspot.com
Visitas ao dicionário
sanefa
Essa eu achei no Machado de Assis q levei comigo para a passagem do ano. Como não podia deixar de ser, é uma importação vocabular do árabe (os árabes e seus palácios cheios de cortinas).Trarei mais outras pérolas achadas no Bruxo do Cosme Velho. Aguardem.
Datação: 1720
Acepções
■ substantivo feminino
1. larga tira de tecido que se coloca na parte superior da cortina ou reposteiro, nas vergas das janelas etc., ger. rematada com franja ou galão
2. cortina de janela
3. tábua atravessada sobre a qual se prendem outras perpendiculares a ela
4. Rubrica: termo de marinha: cortina de tecido us. para resguardar do vento, da chuva e do sol certas partes da embarcação
Etimologia: ár.Sanifa(t) 'borda'
Essa eu achei no Machado de Assis q levei comigo para a passagem do ano. Como não podia deixar de ser, é uma importação vocabular do árabe (os árabes e seus palácios cheios de cortinas).Trarei mais outras pérolas achadas no Bruxo do Cosme Velho. Aguardem.
Datação: 1720
Acepções
■ substantivo feminino
1. larga tira de tecido que se coloca na parte superior da cortina ou reposteiro, nas vergas das janelas etc., ger. rematada com franja ou galão
2. cortina de janela
3. tábua atravessada sobre a qual se prendem outras perpendiculares a ela
4. Rubrica: termo de marinha: cortina de tecido us. para resguardar do vento, da chuva e do sol certas partes da embarcação
Etimologia: ár.Sanifa(t) 'borda'
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
Pescaria
Inauguro o ano pescando estes três poemas no blog do Antônio Cícero (http://antoniocicero.blogspot.com/):
I - Poema dos dons
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria.
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.
Da cidade de livros tornou donos
estes olhos sem luz, que só concedem
em ler entre as bibliotecas dos sonhos
insensatos parágrafos que cedem
as alvas a seu afã. Em vão o dia
prodiga-lhes seus livros infinitos,
árduos como os árduos manuscritos
que pereceram em Alexandria.
De fome e de sede (narra uma história grega)
morre um rei entre fontes e jardins;
eu fatigo sem rumo os confins
dessa alta e funda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, o Oriente
e o Ocidente, centúrias, dinastias,
símbolos, cosmos e cosmogonias
brindam as paredes, mas inutilmente.
Em minha sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.
Algo, que por certo não se vislumbra
no termo acaso, rege estas coisas;
outro já recebeu em outras nebulosas
tardes os muitos livros e a penumbra.
Ao errar pelas lentas galerias
sinto às vezes com vago horror sagrado
que sou o outro, o morto, habituado
aos mesmos passos e aos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve este poema
de uma só sombra e de um plural?
O nome que assina é essencial,
se é indiviso e uno este anátema?
Groussac ou Borges, olho este querido
mundo que se deforma e que se apaga
numa empalidecida cinza vaga
que se parece ao sonho e ao olvido
Jorge Luis Borges: "Poema de los dones" / "Poema dos dons": trad. de Josely Vianna Baptista
II - Ama teu ritmo...
Ama teu ritmo e ritma tuas ações
sob sua lei, assim como teus versos;
tu és um universo de universos,
e tua alma uma fonte de canções.
A celeste unidade que supões
fará brotar em ti mundos diversos,
e, ao ressoar teus números dispersos,
pitagoriza entre as constelações.
Escuta essa retórica divina
do pássaro do ar e a noturna
irradiação geométrica adivinha;
mata essa indiferença taciturna
e pérola a pérola cristalina
engasta onde a verdade entorna a urna.
Rubén Dario: "Ama tu ritmo..." / "Ama teu ritmo... : " trad. Antonio Cicero
III - Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
Rainer Maria Rilke: "Archaïscher Torso Apollos" / "Torso arcaico de Apolo": trad. Manuel Bandeira
I - Poema dos dons
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria.
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite.
Da cidade de livros tornou donos
estes olhos sem luz, que só concedem
em ler entre as bibliotecas dos sonhos
insensatos parágrafos que cedem
as alvas a seu afã. Em vão o dia
prodiga-lhes seus livros infinitos,
árduos como os árduos manuscritos
que pereceram em Alexandria.
De fome e de sede (narra uma história grega)
morre um rei entre fontes e jardins;
eu fatigo sem rumo os confins
dessa alta e funda biblioteca cega.
Enciclopédias, atlas, o Oriente
e o Ocidente, centúrias, dinastias,
símbolos, cosmos e cosmogonias
brindam as paredes, mas inutilmente.
Em minha sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.
Algo, que por certo não se vislumbra
no termo acaso, rege estas coisas;
outro já recebeu em outras nebulosas
tardes os muitos livros e a penumbra.
Ao errar pelas lentas galerias
sinto às vezes com vago horror sagrado
que sou o outro, o morto, habituado
aos mesmos passos e aos mesmos dias.
Qual de nós dois escreve este poema
de uma só sombra e de um plural?
O nome que assina é essencial,
se é indiviso e uno este anátema?
Groussac ou Borges, olho este querido
mundo que se deforma e que se apaga
numa empalidecida cinza vaga
que se parece ao sonho e ao olvido
Jorge Luis Borges: "Poema de los dones" / "Poema dos dons": trad. de Josely Vianna Baptista
II - Ama teu ritmo...
Ama teu ritmo e ritma tuas ações
sob sua lei, assim como teus versos;
tu és um universo de universos,
e tua alma uma fonte de canções.
A celeste unidade que supões
fará brotar em ti mundos diversos,
e, ao ressoar teus números dispersos,
pitagoriza entre as constelações.
Escuta essa retórica divina
do pássaro do ar e a noturna
irradiação geométrica adivinha;
mata essa indiferença taciturna
e pérola a pérola cristalina
engasta onde a verdade entorna a urna.
Rubén Dario: "Ama tu ritmo..." / "Ama teu ritmo... : " trad. Antonio Cicero
III - Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
Rainer Maria Rilke: "Archaïscher Torso Apollos" / "Torso arcaico de Apolo": trad. Manuel Bandeira
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