domingo, 29 de maio de 2011

Os murmúrios do silêncio

                                                                                                               (do José Castello)

       Viajei muito a trabalho, andei cansado, e na semana passada, precisando respirar, desapareci deste blog. Foi uma oportunidade para ficar um pouco em silêncio. Mais ainda: uma chance para refletir sobre o valor do silêncio na literatura. Sempre que falamos de literatura, pensamos nas palavras. Mas sem o espaço entre elas (as pausas de uma partitura musical), se a respiração dos parágrafos (o oxigênio que nos mantém vivos), sem a ajuda do silêncio, é muito difícil escrever.
              Poetas, mais do que ninguém, sabem disso. Penso logo em Vinicius de Moraes, que está sempre a meu lado, um fantasma benigno que nunca me abandona. E em uma de suas letras de música, "A mais dolorosa das histórias", escrita para uma melodia (ou a partir de uma melodia, não sei dizer) de Claudio Santoro. É um pequeno poema de amor, 14 versos singelos, que dormem (em silêncio) no interior de sua Poesia Completa. Quase ninguém os ouve, o que não os impede de existir.
             Três versos, bem simples, com a desafetação que Vinicius tanto cultivou, me orientam: "Oh, silenciai/ Vós que assim vos agitais/ Perdidamente em vão". Podiam ser escritos pelos poetas de hoje, poetas do atordoante século 21, dentro do qual (como em uma carruagem desgovernada) nos agitamos, falamos e escrevemos sem parar. E no qual o silêncio é visto com suspeita, como um renúncia, um fuga medrosa, ou omissão imperdoável.
             No ritmo louco da web, no grande abismo de janelas que se descerram na TV, no bombardeio contínuo da publicidade e do marketing, o silêncio parece obsceno, porque gratuito. A agitação, ao contrário, é vista como produtiva; consideramos, em geral, que as pessoas agitadas são mais responsáveis e dinâmicas, pessoas decididas e donas de si, que não perdem tempo com o improdutivo. Silenciar seria, assim, jogar o tempo fora. Mas é?
               Como um detetive desprovido de um crime, sem saber por onde avanço e por que avanço, afasto-me um pouco de Vinicius para folhear a poesia de Cecília Meirelles, poeta um tanto esquecida _ que eu mesmo, admito, tantas vezes esqueço. Agarro-me a Cecília em busca de um pouco mais de ar. Também sem saber por que, detenho-me em "Sobriedade", breve poema de Mar absoluto. E novamente em três versos, só três versos (para que mais?), que me acolhem, encontro um ponto de respiração.
              Escreve Cecília: "Que coisa tênue, a minha vida, que conversa apenas com o mar,/ e se contenta com um sopro sem promessa,/ que voa sem querer das ondas para as nuvens". Às vezes, como Cecília, sinto vontade de sentar-me diante do mar imenso (ela diz: "absoluto") para simplesmente calar. Não para fugir, não para ausentar-me, ou para me omitir, mas para respirar. As pausas... vivemos em um mundo sem pausas e isso asfixia! Mas em Curitiba, no topo da montanha, estou bem longe de meu mar. Posso, contudo, imaginá-lo, um mar curitibano _ como o mar paraguaio entrevisto, um dia, por Wilson Bueno.
           A conversa (à moda de Cecília) que eu teria com esse mar seria, ela também, silenciosa. Como resposta, eu teria também um "sopro sem promessa". Só o silêncio, envolto em golfadas de ar, embrulhado em maresia, cortado por aves (silenciosas) que sobrevoam. Com seus vôos, elas escrevem alguma coisa que não sei ler. Visto de longe, sentado diante de meu mar inexistente, talvez eu parecesse apático, ou indiferente, ou deprimido. É o que, em geral, pensamos da sobriedade: que ela é desinteresse e pose. Coisa de esnobes, ou de apáticos. Mas não: ando precisando desse recolhimento, e foi talvez por isso que me silenciei ao longo de toda uma semana.
              Digo mais: silenciar é ainda uma maneira de escrever ou, pelo menos, de preparar-se para a escrita. Porque das palavras um escritor não se livra, mesmo que quisesse. Eu não quero. No mesmo poema, Cecília descreve ainda: "Perguntas seculares se levantavam no meu coração:/ última planta dos desertos, voz do Enigma.../ Ai de mim!" No silêncio, em vez de responder por responder, cedemos espaço para as perguntas.
             O silêncio não é um embotamento, mas uma escuta. Não é a ausência de palavras, mas um momento em que elas, enfim, se encolhem, talvez para dormir. Escritores precisam do silêncio como os alpinistas, que se lançam com fúria nos picos do Himalaia, precisam de ar. A beleza está ali, bem diante deles, e quase os faz esquecer disso. Mas, mesmo diante do sublime, eles continuam a ser homens comuns. Seus pulmões continuam a trabalhar.
           Penso, ainda, que para ler _ pelo menos na clássica atitude da leitura silenciosa _ precisamos de silêncio, ou, pelo menos, de introspecção, que é uma espécie de silêncio do corpo. A mente se enrola sobre si mesma, vedando a passagem do mundo exterior. Ela se derrama sobre as páginas do livro e aquele limite branco lhe basta. Não precisa de mais nada. Também ler é aprender a calar.

Pescado em: http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/

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